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Experiência #15 - Kigali, Ruanda


Vivi um caso de amor em Ruanda.

Quando chegamos a Kigali, a capital do país, nada pareceu muito diferente. Até porque a sensação era a mesma de sempre, depois de mais uma daquelas viagens de ônibus que duram 14 horas, não dá pra mexer a perna, fura o pneu, arruma o pneu, para pro pessoal comprar milho, para pro pessoal ir ao banheiro e finalmente chega ao destino com cinco horas de atraso.

Nos hospedamos em um albergue com cara de casa da vó, beeeem familiar e calminho. Fomos recebidos pela proprietária com um abraço super apertado e um pedido de que “nos sentíssemos em casa”. Quase chorei de emoção. Sério.


Até chegar lá, a única informação que eu tinha sobre o país foi adquirida assistindo o filme Hotel Ruanda, que conta sobre o genocídio que há exatos vinte anos matou mais de um milhão de pessoas em quatro meses. Pelo pouco que conhecia, me preparei para encontrar um país se reerguendo de uma triste tragédia que deixa marcas eternas.


Mas ai eu cheguei e encontrei uma cidade limpa, cheia de jardins bem cuidados, gentilezas no trânsito e gente sorridente caminhando pela rua. “Fe, esse é o mesmo lugar do filme?” A resposta foi SIM, acompanhada de alguma piadinha boba que eu não me lembro agora.



Nos dias que seguiram saímos em busca de inspirações e fizemos nossa estreia no moto-taxi. Eles são tão organizados que tem até capacete pro passageiro. Além disso, pudemos sentir, pela primeira vez, a alegria de pegar um ônibus sem ter ninguém no nosso colo – ou estar no colo de alguém – já que lá não é permitido superlotar os meios de transporte público. Tem coisa mais linda e digna pro cidadão, que pode voltar cansado do trabalho sem metade do corpo pra fora da janela do ônibus? Pois é, mas isso quase não acontece na África…

Eu já estava completamente apaixonada por Ruanda quando tivemos a chance de conhecer alguns dos projetos apoiados pela ActionAid Ruanda na cidade de Musanze, próxima à capital.

Na companhia do Michel Ndayambaje, gerente de projetos da ActionAid, passamos por uma escola que educa crianças na primeira infância e duas cooperativas de mulheres que produzem artesanato e pães caseiros. Nos impressionamos com o capricho da escola, a beleza dos artesanatos e a delícia dos pães! E pra variar, não faltou risada.


Curiosamente, foram as crianças e as mulheres quem mais sofreram as consequências da brutalidade e da crueldade que assolaram o país.

Por volta de 1890, quando os alemães e belgas chegaram em Ruanda encontraram uma sociedade estável e em harmonia. Como aconteceu em todos os processos de colonização que eu tenho conhecimento, os colonizadores chegam, se apropriam da terra, impõem sua cultura e introduzem novos conceitos e regras que quase nunca fazem sentido pro povo nativo. Em Ruanda não foi diferente.


Alemães e belgas, a fim de facilitar o controle sobre a terra, trataram de segregar a sociedade em três diferentes grupos étnicos, sendo Hutus e Tutsis os dois principais. Nessa lógica irracional adotada por eles, uma minoria era considerada como sendo Tutsi, sob a justificativa de que guardavam mais semelhanças físicas com o “homem branco”. Para justificar essa classificação eram inclusive feitas medições do tamanho do nariz e da cor dos olhos e o poder aquisitivo também era determinante. Quem tinha mais de dez vacas era automaticamente considerado Tutsi e a eles eram concedidos privilégios e benefícios em detrimento da grande maioria Hutu.


Dali em diante, Hutus e Tutsis quebraram a cordialidade e passaram a se reconhecer como etnias opostas e divergentes.


Se não bastasse, em 1932 foi instituído o uso do cartão de identidade, que indicava expressamente a qual etnia o cidadão pertencia. Esse documento, décadas depois, seria o principal instrumento que decretaria a pena de morte de milhões de cidadãos.


Os anos se passaram e as diferenças se acentuaram, até que por volta de 1992, o presidente do país na época, Juvénal Habyarimana, um Hutu, se colocou à frente de organizar e comandar o treinamento militar de milhares de jovens civis. Era o início da formação da Força Hutu (“Hutu Power”). Subitamente foi importada uma monstruosa quantidade de armamentos, como machados, armas de fogo e facões. A França, a fim de manter relações cordiais por algum interesse econômico, não só emprestou milhões de dólares para a compra dos armamentos, como também o seu exército nacional, que ficou encarregado de treinar jovens meninos a usar os novos brinquedos e tornarem-se parte do exército. Esse assunto ainda parece ser um pesadelo pros franceses…


Ninguém parecia entender bem o porquê de tudo aquilo. Os loucos – e dedo duros – que previam a futura tragédia, eram ignorados e colocados na lista negra dos inimigos do governo. E aos poucos se formava uma nuvem espessa sobre os cidadãos, que em breve derramaria uma chuva de crueldade que mudaria pra sempre a história do país.


Os ânimos se acirravam dia após dia, impulsionados pelas propagandas de ódio transmitidas no rádio e nos jornais subsidiados pelo governo da época. A mensagem era clara “Hutus, exterminem todos os Tutsis do país. Se não o fizerem, serão vocês os eliminados.” Inclusive, a ordem era para que fossem elaboradas listas com os nomes dos Tutsis e Hutus que fossem casados ou mantinham relações comerciais com eles. Esses eram os chamados “Hutus moderados” e também estavam marcados pra morrer.


Foi quando na noite de 6 de abril de 1994, um atentado de autoria até hoje desconhecida, derrubou o avião que levava até Kigali o presidente Habyarimana e o presidente do Burundi, o país vizinho. Todos os passageiros morreram e isso foi a justificativa perfeita para o início do ataque.


Menos de uma hora após a queda do avião, já havia barreiras nas ruas e Tutsis começavam a ser cruelmente assassinados em suas próprias casas.


A história é muito mais longa e impressionante, por isso não me dou ao direito de resumir aqui algo que merece ser estudado e compreendido nos mínimos detalhes por todo mundo.

A verdade é que nos quatro meses que duraram o massacre foram mortos mais de um milhão de Tutsis, incluindo crianças e mulheres, que quase sempre eram estupradas e torturadas em frente aos filhos e maridos antes de serem assassinadas. As armas utilizadas não podiam ser mais cruéis: machados e facões. Os “soldados” faziam questão de não poupar o sofrimento das vítimas e depois de concluído o trabalho, os corpos eram largados pelas ruas, criando um tapete de impiedade.


Ruanda foi dilacerada pelo próprio povo. O país estava devastado. E o resto do mundo não deu muita bola pra isso.


Nós visitamos a Igreja de Nyamata, que durante o genocídio serviu de refúgio para milhares de Tutsis que acabaram massacrados ali mesmo. Hoje o espaço é um memorial em que podemos ver dezenas de pilhas de roupas, crânios e ossadas das pessoas que se abrigavam lá. Uma guia local nos recebeu logo na entrada e nos explicou com detalhes um pouco da história do lugar. Ela é uma sobrevivente. Perdeu os pais e todos os irmãos e ainda assim reconta a mesma história todos os dias, sob a justificativa de que quanto mais pessoas souberem disso, mais chances temos de impedir que isso se repita no mundo.

Ai você me pergunta: “Gabi, mas com tanta tragédia, porque você viveu um caso de amor com Ruanda?”


E eu te respondo que não tem como não se apaixonar pelo país que me ensinou uma das lições mais valiosas da viagem: aprender a perdoar.


As ruas de Ruanda falam por si só. Uma energia diferente. Uma energia boa.


Depois de entendermos a fundo a história, Fe e eu caminhávamos imaginando como estaria aquilo tudo há vinte anos. E o mais impressionante, como eles foram capazes de se reconstruir.

Ruanda está entre os países africanos com menor índice de corrupção e pelo que conversamos – e observamos – os serviços públicos parecem funcionar bem. Caminhávamos tranquilamente pelas ruas, inclusive à noite, e não se ouvia falar em assaltos, assassinatos ou qualquer tipo de violência. Ruanda hoje é paz.


Eu me peguei noites e dias tentando descobrir como conseguiram isso. Reconstruir o país e recriar a unidade em perfeita harmonia.


E eu cheguei à minha conclusão: eles aprenderam a perdoar e o fizeram por amor.


Perdoaram-se entre si e a eles próprios. Mas perdoaram de verdade. Sem guardar mágoas, só lembranças.


Foi quando eu compreendi que amor e perdão caminham juntos.


O amor é o instrumento catalisador do perdão. Quem ama, perdoa e liberta a si e o próximo.

O perdão gera transformação, renascimento, reconstrução. O perdão cura.


Por isso, o povo de Ruanda movido pelo amor incondicional àqueles que se foram e às próximas gerações que estão por vir, decidiram perdoar. Sem o perdão, nunca haveria trégua nessa guerra e os seus filhos, netos e bisnetos continuariam vivendo o terror de temer pela morte. Dia após dia.


Eles perdoaram incondicionalmente a maior tragédia que marcou a sua história. Perdoaram e pediram perdão. E, assim, nasceram de novo.


Eu vivi um caso de amor com Ruanda e vou viver isso pra sempre, porque Ruanda me ensinou que o amor e o perdão curam as feridas, libertam a tristeza e trazem a certeza de prosperidade e harmonia.


Se não bastasse, Ruanda me lembrou de uma das orações que minha mãe me ensinou quando eu ainda era criança:

“Eu te perdoo, você me perdoa. Eu te amo, você me ama. Eu te agradeço, você me agradece. Somos uma só alma perante a Deus. Muito, muito obrigado.”

E foi assim que, em Ruanda, eu vivi um caso de amor e nasci um pouquinho de novo.


Gabi.

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