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Experiência #29 - Tailândia



Depois do visto negado em Bangladesh o jeito foi improvisar e antecipar nossa chegada à Tailândia.


Minha tendência é não me entusiasmar taaaaanto com lugares muito turísticos e, definitivamente, a Tailândia é um prato cheio pra isso. De qualquer forma, é inegável que Bangkok é uma das cidades mais vivas e encantadoras que eu já fui, as ilhas, ao sul do país, são mesmo de tirar o fôlego e as pessoas fazem questão de espalhar sorrisos por onde passam.


O país é uma monarquia que desde maio de 2014 é governada pelos militares e a nossa sensação é de que para determinados assuntos as leis – quando existem – não parecem ser aplicadas no sentido estrito da palavra. Conhecida pelas praias paradisíacas e a vida noturna animada, a Tailândia é um dos países mais visitados do mundo e só em 2013 recebeu 27 milhões de turistas (fonte: UNWTO).


Pra muitos, continua sendo a viagem dos sonhos e é por isso que essa experiência tem um peso ainda maior. Pelas questões que ela vai apresentar e pela forma que poderá te influenciar.


De acordo com a UNODC, o escritório da ONU sobre drogas e crimes, cerca de dois bilhões de pessoas (sim, BILHÕES) não estão devidamente protegidas contra o tráfico de pessoas. Isso porque, se já não são vítimas diretas desse crime, vivem em países cujas leis e tratados sobre o assunto ainda não foram ratificados e se foram, ainda estão em processo de “amadurecimento”.


Como principal consequência do tráfico humano, estima-se que atualmente 21 milhões de pessoas estão submetidas ao trabalho forçado (fonte: OIT). Não por acaso, a maioria são mulheres que invariavelmente tornam-se vítimas de exploração sexual.


Na Tailândia os refugiados que vivem fora dos campos delimitados para acolhê-los são considerados imigrantes ilegais e passíveis de penalidades. Na prática, eles simplesmente não têm qualquer direito ou assistência do governo ou da polícia e se sentem intimidados a procurar ajuda em caso de necessidade. Isso estimula a prática do tráfico humano e do trabalho forçado dentro do país, já que as vítimas silenciam por medo na busca por justiça.


Essa situação é o cenário perfeito para os exploradores, que se aproveitam da fragilidade da lei e dos direitos humanos para ganhar muito dinheiro. Estima-se que o trabalho forçado desenvolvido pelo setor privado movimenta cerca de 150 bilhões de dólares americanos por ano (fonte: OIT).


O cenário é absurdo demais pra imaginar, mas fica muito claro quando passamos a enxerga-lo nitidamente pelas ruas. Bangkok nos apresentou esse tema como um soco na cara. Dolorido e necessário.


Caminhando pelas ruas da cidade pude comprovar que o turismo sexual é mesmo um dos atrativos da Tailândia, o que comprova os dados que eu trouxe acima e confirma que a maioria do trabalho forçado é evidenciada pela exploração sexual de mulheres e meninas.


Isso não é por acaso. Os traficantes buscam estrategicamente refugiadas de outros países ou meninas que vivem na zona rural. A conversa costuma começar com uma proposta de trabalho na cidade grande como garçonete ou arrumadeira e na esperança de tirar a si e à família da pobreza, as meninas acreditam nesse sonho e aceitam a mudança. Acabam surpreendidas com o pesadelo de serem exploradas sexualmente, com os passaportes e documentos retidos, com medo e com vergonha. E o pior, sem nenhuma ideia de como sair disso com vida.


A cada 500 metros é possível cruzar com um daqueles casais em que o homem é ocidental bem mais velho e uma menina asiática, magérrima e bem mais nova. Mas pelo que vi nas ruas, não é um privilégio dos homens mais experientes, já que vários jovens também circulam na mesma companhia.


Pros afiados que adorariam dizer que isso é preconceito e julgamento, adianto que acredito no amor em todas as mais possíveis e variadas formas, mas a partir do momento em que os dados apontam que cerca de 60% dos turistas homens na Tailândia se beneficiam da indústria do sexo, fica difícil acreditar que absolutamente todos os casos que vi são amor à primeira vista (fonte: Night Light International). Ainda assim, obviamente existem casais que se uniram única e exclusivamente pela vontade de estarem juntos. Sorte deles.


Em uma das organizações que conhecemos, a Night Light International, que trabalha em várias frentes relacionadas ao combate ao tráfico humano, mas sobretudo no resgate e assistência dessas vítima. Tivemos a chance de conversar com Krista Couts sobre o tema e os desafios enfrentados. Pra se ter uma ideia desse mercado, existem pacotes semanais e até mensais oferecidos aos clientes, que podem “alugar” uma acompanhante pelo tempo que desejarem. Carência, baixa auto estima, solidão… tudo poderia justificar essa prática se por trás desse “namoro” não existisse um mercado negro movido a todo tipo de privação, violência e abuso.


Vale ressaltar que dentre essas mulheres, também existem aquelas que escolheram com liberdade essa forma de trabalho (por “liberdade” nesse contexto entenda ausência de qualquer tipo de coerção física, social ou moral praticada por um terceiro contra essa mulher). Elas merecem respeito e proteção legal da mesma forma, só não são o foco do meu relato, que pretende deixar claro que a impossibilidade de escolher por si só se relacionar sexualmente com alguém em troca de dinheiro é um crime impossível de ser classificado na minha cabeça.


Nada tinha me chamado tanta atenção até chegarmos por acidente a uma das ruas mais famosas da cidade. Descemos do metrô e ao procurar um lugar pra jantar, fomos abduzidos pela Soi Cowboy, uma rua estreita e toda iluminada, onde mulheres de todas as idades, de roupa ou de biquíni, nos convidavam para tomar uns bons drinques. Eu perdi a voz e fui caminhando com dificuldade, tentando sorrir e entoando mentalmente o mantra que aprendi no retiro Budista (aquele que desperta o desejo de compaixão). Se naquela hora eu pudesse fazer um pedido, eu desejaria que todas aquelas mulheres pudessem ter a chance de escolher ou não estar ali. Simples assim.



Algumas delas estão ali por opção, mas uma boa parte é vítima desse tráfico e vive em constante alerta, sem expectativas de mudar de vida ou de ser ao menos resgatada. E é por elas que meu coração se despedaçou.


Tive vontade de sentar para uma cerveja, um desabafo ou brigadeiro de colher, mas esse mundo não é nada cor de rosa e sei bem que qualquer indício de conversa fiada pode despertar a atenção de quem está no comando do negócio. Achei prudente não criar nenhuma situação que pudesse prejudicá-las ou incomodá-las de alguma forma.


Mas pra minha surpresa, parecia que só eu e o Fe estávamos desconfortáveis com aquilo tudo. O resto dos turistas, incluindo mulheres e casais, pareciam inebriados pelas luzes, pelas doses e pelas lindas e sorridentes meninas. Será MESMO que ninguém ali se importava com nada além de dar mais um “check” em um dos TOP 10 lugares pra se visitar em Bangkok?


Voltamos pra casa em silêncio, com aquela sensação de impotência por não conseguirmos fazer absolutamente nada para mudar essa realidade.


Chegando a Chiang Mai, no norte da Tailândia, tivemos a chance de visitar um negócio social – o Chai Lai Orchid – cujo foco também é combater o tráfico de mulheres por meio do turismo. A fundadora Alexa Phan resolveu criar um Eco Resort verdadeiramente baseado no conceito de turismo consciente e sustentável que inclui e beneficia diretamente a comunidade local, representada em grande parte por refugiados de Burma, atual Mianmar.


No Chai Lai Orchid é possível se hospedar em um lindo bangalô por um preço justíssimo, que não paga o privilégio de ser acordada com um elefante passando em frente a sua varanda. Vale ressaltar que lá não é permitido passear sobre os elefantes utilizando aquelas cadeiras de madeira pesadíssimas, que causam prejuízos sérios pra eles. Aliás, o turismo de elefante também é uma indústria extremamente lucrativa na Tailândia, o que estimula os maus tratos e o abuso dos animais, que parecem passar despercebidos por quem se diverte em cima da cadeira. Mas tudo é uma questão de informação, então agora que eu e você sabemos que isso não é correto, nem saudável pro elefante, basta não concordar em fazer esses passeios e compartilhar isso para que mais pessoas descubram também e parem de alimentar uma prática cruel e desumana.



Voltando ao tráfico de pessoas e à exploração sexual, por meio do projeto Daughters Rising, atrelado diretamente ao Chai Lai Orchid, Alexa também trabalha levando consciência e oportunidade às meninas e mulheres que vivem como refugiadas em vilarejos. Por meio de workshops, oficinas, cursos e discussões as meninas ganham condições de se proteger contra possíveis exploradores e se desenvolver como pequenas empreendedoras no ramo do turismo e artesanato. Toda a equipe que trabalha no Chai Lai Orchid é composta por refugiados que aprendem desde a arrumação do quarto até a recepção dos hóspedes e a renda do resort é revertida para manter o negócio e os projetos do Daughters Rising.


Conhecemos bem de perto essa realidade quando passamos uma noite na casa de Eddy, um jovem tailandês cuja família veio de Mianmar há algumas décadas. Cozinhamos juntos, aprendemos sobre a cultura da sua tribo e pudemos comprovar que o acesso a informação e oportunidades de desenvolvimento protegem as pessoas de caírem em armadilhas cruéis.



De Chiang Mai fomos para a praia! Uhuu.


Eu adoro praia e por esse motivo fiz questão de conhecer Maya Bay, uma praia paradisíaca das ilhas Phi Phi que vendo na internet a gente acha que poderia passar uma vida toda morando ali, pescando e cantando num lual.


Foi um bate-volta de uma manhã e ainda assim me deu mais emoção do que encontrar leite condensado nos mercados daqui!


Fomos naqueles barquinhos de madeira que oficialmente cabem cinco e eles colocam dezessete. Começou a chover no meio do caminho até a ilha e enquanto eu rezava pela vida, o Fe tava se divertindo filmando as ondas invadindo tudo. A foto registra minha alegria.



Passamos por vários lugares antes de chegar à bendita praia e quando chegamos… Tchãtchãtchãnnnnnnnnnnnnnnn.


Pelas minhas contas havia aproximadamente 234.345 pessoas e 54.364 barcos. Brincs. Não tinha espaço direito pra andar, nem pra nadar, nem pra enxergar se era mesmo uma praia. Mas eu fui forte e entrei na água, mesmo em choque. Mergulhamos e quando olhei pro Fe ele estava com um canudo de plástico preso no ombro. JURO haha parece piada, mas ai, depois de um episódio desse, eu relaxei e curti a muvuca (até porque eu amo muvuca, só não achei que a encontraria no meu momento de sonho na praia da Tailândia).



Tinha plástico espalhado por todo lado, gente gritando, rindo, barulho, mil barcos, pessoas tirando foto de coisas nada a ver e algumas delas pareciam estar como eu. Paralisadas, sem força pra demonstrar a inconformidade de estar de cara com o poder de destruição do homem.


Mas não acabou ai. Na volta do passeio paramos na Monkey Beach conhecida pelos macacos (ah vá) que não tem mais medo de gente. De novo, mil pessoas interagindo com eles e oferecendo de tudo… salgadinho, frutas (menos mal), bolinho e – respire fundo – refrigerante. O Fe lida melhor com essas coisas e continuava rindo (um pouco de nervoso, claro), enquanto eu só observava o pessoal animadíssimo com selfies e petiscos com os macacos. Era tipo um happy hour de bar. As fotos mostram bem isso, principalmente o fato de os turistas não parecem muito preocupados com o aviso de “Respeite o paraíso. Por favor, não alimente a vida selvagem local”.



Chegando a terra firme não sabia mais com quem me preocupar. Com as meninas traficadas e exploradas sexualmente, com os elefantes abusados e maltratados, com as praias tomadas por sujeira e plástico ou com os macacos e suas dietas desbalanceadas.


Foi quando conclui que todos esses pontos tem origem num problema maior: a ignorância do ser humano.


Somos genuinamente capazes de nos sentir atraídos por tudo que é diferente, exótico, inesperado e novo. É disso que viagens se tratam, mas ninguém falou pra gente que tem um limite pra esse prazer e o limite é quando alguém, um animal ou um lugar estão sendo prejudicados de alguma forma. Parece tão óbvio, mas pra quem insiste em viver no próprio casulo, esse limite é bem difícil de explicar.


O aluguel de uma namorada “traficada”, o passeio na cadeira sobre o elefante, o salgadinho pro macaco e a garrafa de refrigerante jogada no mar também são tristes indicadores de que perdemos a noção do que é humano – ou não – e até que ponto podemos ir praticando a nossa busca incessante pelo prazer e pela felicidade.


Somos nós quem alimentamos essas atrocidades e essa afirmação não é uma acusação a você, mas sim a uma grande parte da sociedade, a qual nós fazemos parte, que não se preocupa em se questionar antes de fazer uma opção. Afinal, em viagem vale tudo, né? É um mundo dos sonhos, onde temos a chance de nos divertir ilimitadamente antes do dia mortal de voltar pro trabalho. Já pensou em tentar trabalhar com algo que você ama? Pode ajudar nessa sensação, mas isso é papo pra outra hora.


É assim com quase todo mundo e é isso que dá uma espécie de “aval” pra agirmos com liberdade e desprendimento. Mas pera lá! Ninguém disse que liberdade é se dar ao direito de desconsiderar a história pessoal por trás de cada sorriso amarelo das meninas de biquíni em Soi Cowboy, nem alimentar macacos com bolinhas de queijo.


Na minha opinião, o turismo, as viagens e as descobertas trazidas por ela são valiosíssimas para nos aprofundarmos em questões que na correria do dia a dia nos passam despercebidas ou que sequer despertaram nosso interesse antes. Mergulhar em novas culturas, se livrar de preconceitos e enxergar muito além do que somos acostumados.


Por isso viajar é tão poderoso, mas tem que ter consciência e informação para deixar de programar tudo no automático. Não precisa fazer uma auditoria extensa no país, no hotel que se hospeda ou no restaurante que janta, nem transformar o prazer em uma pesquisa de antropologia.


Basta estar com o olhar atento e calibrado para conseguir identificar o que parece cheirar mal, escolher não fazer parte dessas “experiências” e falar abertamente sobre isso. E vamos combinar que nem é tão difícil assim, vai?


É só escolher ser parte da turma que ainda ama o mundo, os animais e as pessoas, mesmo tendo a sensação de que um meteoro se aproxima a cada dia da Terra. É escolher não ser conivente com aquilo que está estampado ser errado, mesmo que todo mundo ignore isso. É escolher enxergar todos esses absurdos e levá-los junto na mala, pra que você não se esqueça de ajudar a resolvê-los quando chegar em casa.


É escolher viver só o melhor da experiência, do lugar e das pessoas. E oferecer de volta o seu melhor também.


Boa viagem!


Gabi.

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