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Experiência #10 - Chintandu, Kasama, Zâmbia


Desde o começo da viagem tínhamos alguns sonhos, um deles era o de viver a vida de vilarejos rurais africanos e tivemos essa oportunidade em Chintandu, próximo a Kasama, no extremo norte da Zâmbia. Por mais que imaginássemos mil formas de como poderia ser essa experiência, o que sentimos os três dias que estivemos vivendo com a família Kasonde superou de longe as expectativas.


Antes de contar tudo preciso agradecer essa vivência única graças aos grandes amigos Claire Albrecht e Justin Hostetter que conhecemos através da WWOOF (organização que apresentei no último texto). São dois jovens americanos absolutamente inspiradores e iluminados que mudaram suas vidas pra morar na Zâmbia e transformar a vida de jovens locais. Através da criação da Kasama Micro Grants eles realizam o sonho de meninas de comunidades rurais ao empoderá-las por meio da educação. – Aguente a curiosidade, por favor, que a Gabi vai contar tudo no próximo texto. Eu só não podia deixar de mencioná-los depois de tanto amor e carinho que nos deram durante essa maravilhosa semana que convivemos.


De volta à vila, as primeiras impressões que tivemos e levamos de lá foram alegria, generosidade, bom humor e respeito. Só isso… Valores que tenho muita afinidade por acreditar que melhorariam só um pouquinho o mundo…



Chegando à casa deles, literalmente no meio da floresta sem cerca nem portão, o casal Kasonde veio correndo e sorrindo em nossa direção para um grande abraço apertado de boas vindas. – Foi o nosso primeiro contato, detalhe. – A criançada imediatamente pegou as malas de nossas mãos, como uma gentileza de primeiro impacto. Evidente que não me senti bem em deixar uma criança carregar mais peso que eu, mas lembrei do zelo por respeitar a cultura local, dentro do seu tolerável claro. A poligamia não me deixaram aceitar ainda… (é piada Gabi.)


Ao entrarmos na “fazenda”, por ser uma área aberta com dependências separadas, imediatamente nos buscaram cadeiras e fizeram questão que sentássemos enquanto eles se sentavam no chão. Em minutos a senhora Kasonde nos trouxe pratos, copos com água e colocou comida ao centro. Em seguida uma jarra com água, sabonete e bacia para lavarmos as mãos ali mesmo. É costume já que as refeições são feitas com as próprias mãos. Nos pediram para pegar a comida em primeiro lugar e nem titubearam em pedir que repetíssemos. Uma curiosidade da cultura masculinizada é que só a Gabi, ele e eu sentávamos sobre a toalha no chão para as refeições. A mãe e demais filhos comiam ao redor das panelas a alguns metros de nós e as meninas é que vinham retirar tudo da mesa e lavavam depois. Todas muito educadas.



Naturalmente comemos tudo o que nos ofereceram. O nshima é o mais tradicional, uma mistura de água, milho, mandioca ou sorgo. No Zimbábue (onde também é típico) acompanhamos o preparo e vimos que dá trabalho, pois depois que toma corpo não pode parar de mexer. No dia-a-dia também comem feijão, molho com ervas, tomate e vegetais cozidos. Quando o orçamento alcança comem frango, pequenos peixes com espinha e tudo, como o bagre, mas com uns dez centímetros de comprimento. Ocasionalmente cabra, porco e boi. O mais inusitado para o nosso padrão de culinária é a lagarta. É bem pequena, crocante, salgada e frita. Saborosa, mas o nossa superstição cognitiva ainda tentava dizer para o nosso pensamento: “eca”…



Ba Kasonde, como chamam o líder masculino da família, é super bem humorado, fazia piada de tudo e dava aqueles tapinhas para rir junto. Eu gargalhava mesmo, sou bobo… Quando as crianças nos cumprimentavam elas faziam uma reverência flexionando os joelhos e reclinando o corpo como demonstração de respeito. Nos chamou a atenção tamanha gentileza o tempo todo, num lugar onde o nosso preconceito ridículo associa simplicidade e “pobreza” à falta de educação. Essa associação é ainda mais grotesca ao lembrarmos que somos de um meio social muito mais mal educado, especialmente em como as pessoas se tratam no trânsito, no trabalho, no restaurante, na vida…



Ele foi militar por vinte anos até se aposentar e mudar para esse vilarejo em 1989. Eles tiveram nove filhos, hoje sete estão vivos e três moram com eles. Netos ele perdeu as contas faz tempo. O mito popular que diz que os africanos têm muitos filhos para sustentarem seus pais no futuro ficou um pouco questionável, já que no caso dele, os quatro filhos que moram e trabalham na cidade próxima não ajudam em nada…


Além das duas cabanas onde dormem, há uma cabana principal onde cozinham e comem, viveiros para animais e banheiros. Para quem foi acostumado com privilégios na cidade grande, a maior diferença é nesse último. As paredes são de grama seca alta, se toma banho com balde e caneca e o sanitário é um buraco no chão com tijolos de apoio. Toda a água que usam vem de um poço que construíram e a coletam na mão com uma corda e um galão.



Aos seus sessenta e sete anos ele sustenta a família com a sua aposentadoria mensal de trinta dólares e sua horta. Ele cultiva mandioca, tomate, cana de açúcar, milho e alguns vegetais. Também cria algumas galinhas, cabras e porcos para vender e esporadicamente alimentar a família. Inclusive, somando ao ritual de generosidades, nos ofereceram sacrificar uma galinha para celebrar a nossa visita, mas apenas agradecemos e pedimos para que a guardassem vivinha ainda. Eles nos agradeceram bastante a resposta negativa. Foi um momento pensativo, talvez porque dispensamos algo substancial para eles. Curioso…



Além de admirar esse estilo de vida simples, fomos para aprender ainda mais técnicas de agricultura. Ele trabalha sozinho em sua horta desde que mudou pra lá e fez tudo com as próprias mãos. Como não tem recursos, a irrigação é feita com balde e água de pequenos poços que fez. É uma mão de obra muita cansativa e ele estava feliz que a temporada de chuva começará a qualquer momento em novembro e deve durar até maio. Deu pra imaginar o alívio depois que fizemos algumas levas de dez litros de água para ajudar. Aiii as minhas costas….


Na convivência do dia-a-dia pedimos para que ele seguisse normalmente sua rotina, para que não atrapalhássemos e pudéssemos conhecer ao máximo. A partir das 5.30h cuidávamos da plantação por algumas horas e voltávamos para almoçar. De tarde ele alimentava os animais e descansava com a família. Depois gostava de escutar rádio, quando conseguia achar o sinal. Na coleção de generosidades, eles também prepararam com muito carinho a cerveja local feita de milho-miúdo (também chamado de painço) para que experimentássemos. Ela é de cor bege e tem flocos do cereal, sabor bem amargo e não faz espuma. Não é ruim, mas nem tão boa – fui bem educado na avaliação vai… –



Em um dos dias ele caminhou conosco pelo vilarejo, passamos por muitas casas sempre saudando com o pouco que aprendemos de bemba, o idioma local. Fomos à casa do chefe da comunidade, ele é uma espécie de juiz para resolver qualquer discórdia interna e também o representante externo do povoado. A parte triste foi quando conhecemos a escola comunitária, que está largada por falta de recursos e professores voluntários interessados. Ver uma sala com chão de areia, mesas empoeiradas e outra sala apenas com mato nos chocou ainda mais, pois grande parte das crianças que conhecemos por lá vão, em teoria, a essa escola. Ai ficou claro que muitas das respostas positivas que recebíamos ao perguntarmos se aquela criança estudava, não eram necessariamente reais. Ou pela vergonha de responder que não estuda ou por ser a forma mais fácil de responder… Pelo tanto que pudemos nos aprofundar nesse assunto com nosso tom preocupado, percebemos que um movimento para arrecadar um dólar por mês de cada uma das duzentas famílias, que ali vivem, para pagar uma professora da vila mesmo, seria bem plausível. Mas tristemente sentimos a falta de iniciativa. A Gabi tentou ser incisiva em dar essa ideia, mas a verdade é que está somente nas mãos deles. Torceremos sempre!



O mais incrível desses dias “rurais” foi fazer questão de estar com eles a todo instante, exceto no sono… Ah, particularmente para dormir tivemos outra grande generosidade, pois a filha mais velha Estella, nos cedeu gentilmente sua cabana para que ficássemos mais confortáveis. Posso revelar que dormíamos com amigos inesperados, como gafanhotos gigantes e ratos abusados comendo nossas comidas… Apesar de acordar poucas vezes (trinta por noite), descansamos bem.


Nesse ritmo familiar local, confesso que senti um grande impacto para a minha mente constantemente acelerada e querendo fazer coisas. Foram horas sentados no chão assistindo árvores, acompanhando a conversa deles sem entender nada, caminhando entre os porcos, resgatando as cabras foragidas e dando susto nas galinhas. Até aqueles momentos de silêncio total aconteceram e uma sensação de estar presente ali só flutuando no tempo foi inexplicavelmente prazerosa.



Nos momentos de reflexão fica cada vez mais claro que meu eu interior consciente tem absoluta convicção que tenho prazer de estar ali em harmonia, com pessoas generosas do bem, com a natureza e apreciando a vida. Mas o meu ego-pensante ainda quer resistir às vezes e tentar me convencer que o bom não é ali… É difícil estabelecer essa conversa entre a consciência e o ego, depois de três décadas sendo influenciado diariamente por desejos muitas vezes necessariamente desnecessários… Ué, estou me conhecendo mais, que bom! Mas calma ai pessoal de dentro (da minha mente), relaxem que estamos na África.

Esse é o conflito constante da nossa sociedade, impor um ritmo que um grupo de poder quer e ditar o que cada um de nós tem que achar que é melhor. Bom, te desejo força para conhecer e nutrir o seu eu!


O vídeo mostra um pouco como foram esses dias incríveis.


Gratidão à Claire, Justin e família Kasonde!


Felipe.

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