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Experiência #17 - Wagoma, Quênia


Pra mim algumas Experiências são mais difíceis de colocar no papel. Eu aprendo tanta coisa, que tenho dificuldades para organizar tudo na cabeça e depois contar pra você. Foi assim nos nossos primeiros dias no Quênia.


Desde 2013 eu passei a cultivar um carinho especial por esse país, mesmo sem tê-lo conhecido antes.


Quando eu ainda trabalhava como advogada ganhei de presente um dos casos mais especiais que já tive a chance de conduzir. Não por acaso, antes da primeira reunião com o cliente eu senti um enorme frio na barriga, que acabou em um abraço apertado e a sensação de que eu já os conhecia de outras vidas.


Os clientes, que hoje são amigos, são a Ilaina Rabbat e o Roshan Paul, fundadores do genial Amani Institute, com sede em Nairobi. A reunião era pra discutir a viabilidade jurídica de levar o Amani pro Brasil. E para a nossa alegria, conseguimos.


O Amani é uma escola de formação de novos líderes, e faz com que eles consigam enxergar o mundo com todas as suas belezas e dificuldades, tornando-se capazes de pensar, criar e implementar ideias e projetos que transformem essas realidades. Pra sua sorte, agora o Amani está no Brasil e lá você pode aprender muito, na teoria e na prática, daquilo que a gente costuma falar por aqui.


A Ila foi uma das primeiras pessoas a saber da ideia do Empathy Experience e desde o primeiro momento ela foi uma das maiores apoiadoras do projeto. Chegando ao Quênia, não foi diferente. Graças a ela e seu coração enorme, fomos apresentados a alguns dos ex alunos do Amani, que hoje estão a frente de iniciativas fantásticas desenvolvidas no país.


A maior delas foi conhecer o RONA Foundation criado pela Roseline Orwa, que acolhe viúvas e órfãos em situação de vulnerabilidade.



Rose é um ser de outro mundo. Até conhecê-la, se eu pudesse escolher ser alguém, eu escolheria ser a Ivete Sangalo, mas depois de passar quatro noites com a Rose, a Ivetinha perdeu o posto. Inclusive, eu tenho a sensação de que até a Ivete gostaria de ser a Rose, se não fosse ela mesma… Enfim, você vai entender o porquê (Ivete, te amo muito ainda hehe).


Quando chegamos de ônibus a Kisumu, uma cidade no sudoeste do país, Rose já estava a nossa espera. Quando cruzamos o olhar, ela já abriu o sorrisão e os braços como se fosse apenas um reencontro. Abraço apertado, óbvio. Coisa de sonhadores


Mesmo na companhia de dois dos seus escudeiros, entramos no carro e a Rose assumiu a direção. Foi quando gritei “Girl Power” e a gente fez um “hi five”. Juro. O Fe já estava preparando um olhar de vergonha alheia.


O caminho até o RONA durou quase duas horas e depois de um longo percurso numa estrada de terra, chegamos a um paraíso às margens do Lago Victoria, onde ainda não chegou água encanada, nem eletricidade (o que já não nos assusta mais).


Descemos do carro e havia um coral de cerca de vinte crianças cantando e dançando músicas super alegres. A festa durou o resto do dia. Comemos manga, demos risada e nos apaixonamos pela generosidade e o amor com os quais no receberam. Um quarto foi reservado só pra gente e frutas frescas eram colocadas no criado mudo quase que de hora em hora.


Quando caía a noite, ascendiam a fogueira e jantávamos todos juntos. Como uma grande família mesmo. Toda noite eu tive a sorte de ter um pequeno dormindo no meu colo, enquanto alguns outros mexiam no meu cabelo. Eu que gosto pouco disso, quase paguei pra que eles não parassem com o cafuné, mas ai lembrei que trabalho infantil é crime.



Rose nasceu ali, na vila de Wagoma, em Bondo. Filha de pais professores, cresceu ouvindo sobre a importância da educação em uma vila em que a grande maioria da população é portadora do vírus HIV. Não é a toa que Wagoma é conhecida como “Dead Village” (Vilarejo da Morte). Isso porque lá o comportamento ainda é predominantemente machista. Todos os homens, inclusive os casados, costumam se relacionar com muitas mulheres e quando descobrem que são portadores do HIV se recusam a receber tratamento, muito menos a evitar a contaminação das parceiras. Essa omissão é a grande responsável pelas mortes, que deixam dezenas de viúvas e crianças órfãs todos os anos.


Mas Rose enxergou esse ciclo negativo desde jovem e alguma coisa dizia que ela deveria fazer algo contra isso. Depois de casada, quando já vivia em Nairobi, Rose descobriu que não podia ter filhos. Isso foi o suficiente para arruinar o seu casamento e, se ela deixasse, a sua vida. Em seguida veio o divórcio e Rose não conseguiu fugir dos estigmas impostos pela sociedade a uma mulher sem filhos e divorciada. Sua casa e seu escritório foram incendiados, ela perdeu seu emprego no governo e uma bolsa de estudos. Tudo por causa do divórcio.


Mas como precisa de muuuuito mais pra se tirar o brilho de alguém que nasce com o coração aberto, Rose conheceu um novo amor com quem se casou novamente. O casamento durou o suficiente para ela ainda falar dele com muito carinho. Há oito anos Rose ficou viúva.


De novo, ela não se deixou abalar. Rose já conhecia o caminho a percorrer e decidiu fazer diferente. Aos poucos sua casa foi se tornando um ponto de encontro pra outras viúvas que enfrentavam o mesmo desafio que ela. Emocionante ouvir de Rose que sua grande inspiração veio da sua mãe, Mama Patricia, que já mobilizava a comunidade em prol de assuntos relevantes quando Rose ainda era uma menina.


No Quênia, assim como em boa parte da África – e do mundo – as mulheres vivem em situação permanente de vulnerabilidade com relação aos seus direitos e obrigações legais. A nova constituição do país, que entrou em vigor em 2010, prevê a igualdade de gêneros entre homens e mulheres em vários aspectos da vida civil. Mas na prática não é bem assim.



Mesmo com a nova lei, os costumes locais, sobretudo na zona rural, continuam sendo aplicados. Um deles é a crença de que o homem é o único proprietário da casa e dos bens materiais adquiridos pelo casal. No caso de divórcio ou morte do marido, as mulheres perdem tudo, que na maioria das vezes acaba sendo confiscado pela própria família dele.


Foi quando Rose percebeu que podia ser a precursora de um novo movimento contra a discriminação e estigmatização da mulher. E porque não criar um espaço em que pudesse acolher também as dezenas de órfãos que cresciam abandonados?


Assim nasceu o RONA Foundation – Wagoma Orphans and Widows Centre (Wagoma Centro para Órfãos e Viúvas) – e Rose com seu coração de mãe, largou seu emprego e decidiu levar vida nova à vila da morte.


Hoje quase 200 crianças e jovens órfãos são atendidos pelo RONA. Para alguns deles, o centro é tudo o que têm. Para outros, é onde passam o dia, se divertem com os amigos, fazem todas as refeições e depois seguem para dormir na casa de algum parente ou vizinho. Isso acontece todos os dias. Graças aos recursos doados ao RONA, é possível mandar quase todas as crianças para a escola, já que é cobrado um valor trimestral. Dois dos jovens que cresceram no RONA estão hoje na universidade.


Para Rose, o RONA tem hoje três objetivos principais: (i) promover a campanha #StopWidowAbuse (#ChegaDeAbusosAViúvas), com a intenção de dar publicidade a essa questão e ensejar a criação de leis que protejam os direitos das viúvas; (ii) transformar-se em um modelo de centro de acolhimento e suporte de viúvas e órfãos que possa ser replicado em diversos países; e (iii) advogar para que seja criada uma política clara que assegure mulheres e crianças em caso de falecimento do marido/pai, já que, de acordo com Rose, o seguro de vida não é um mecanismo que funciona bem no Quênia.


Não para por ai!! A Rose formou uma verdadeira tropa de elite reunindo as viúvas de Wagoma, oferecendo treinamentos para geração de renda, criando uma horta comunitária, doando a elas cabras e galinhas para a produção de leite e ovos e realizando rodas de discussão sobre direitos e deveres. Ela foi trazendo consciência a mulheres que sequer sabiam que é possível discordar de algo que não lhes favorece e, assim, elas passaram a se sentir mais e mais poderosas e capazes de superar os preconceitos e as dificuldades que as suas histórias insistem em lembrá-las.


Além disso, graças a Rose, foram construídas dezesseis casas para acolher algumas das viúvas e seus filhos. Oito delas ainda estão na fila para ganhar também. Nós até participamos da construção de uma das casas de barro, que foi levantada em um único dia com a ajuda conjunta dos vizinhos. Foi uma festa!! O vídeo mostra mais desse dia.


O curioso disso é que os homens responsáveis pela construção dessas casas passaram por um processo árduo de convencimento, já que seria contra os “costumes” trabalhar em favor de uma viúva, ainda mais construindo uma casa pra ela.



Observando isso, nos últimos tempos foram justamente os homens que ganharam mais atenção do RONA com a criação de um time de futebol. Essa foi a maneira que Rose encontrou de aproximá-los dos problemas da comunidade e trazê-los para as discussões necessárias, como a importância da prevenção e controle da AIDS e da campanha para se acabar com o abuso de viúvas (#StopWidowAbuse). Os homens, como sempre, são aliados fundamentais na luta contra as desigualdades de gênero e quanto mais próximos eles estiverem, mais fácil é superar os obstáculos.


Engraçado é perceber o quão respeitada é a presença da Rose! Tivemos a chance de assistir uma partida entre o time de RONA e o time vizinho (o Fe jogou e deu aula nos gramados, como ele mesmo costuma dizer…). Mas mesmo com a participação do craque Felipe Valderrama (novo apelido dado por mim em homenagem à cabeleira que ele adotou), o jogo terminou em 0x0, com direito a um discurso de Rose ao final. Tranquilamente e com a maior segurança do mundo, ela afirmou que se não há dedicação, não há vitória e a primeira providência a ser tomada deveria ser a retirada de uma montanha de areia que fica literalmente no centro do campo haha. Você verá no vídeo.



E ai eu me peguei pensando como aquela mulher, com uma história construída sobre desafios, que inclui também graves problemas de saúde e perda de vários familiares, foi capaz de renascer e tomar as rédeas da própria vida, se transformando na maior referência de sua comunidade e na principal inspiração que tive até agora. O que será que eu tenho que fazer pra chegar a isso?


Concluí que a primeira providência é engrossar a minha voz sem o uso de aditivos.

As outras respostas a Rose mesmo me deu, quando nos disse que não somos nós quem escolhemos o caminho. É o caminho que escolhe a gente.


Ela foi além quando disse que dinheiro não constrói nada. Quem constrói são as pessoas e ela é prova disso. O RONA se mantém por meio de doações e Rose investiu o pouco que tinha nesse projeto. O sonho é que em poucos anos se torne um modelo financeiramente auto sustentável e replicável em diferentes partes do mundo.


Rose é puro amor e a esse amor ela dá o nome de Deus. O mesmo Deus e o mesmo amor, que nos fazem acreditar que a felicidade só é real se é possível compartilhá-la. Quem é feliz MESMO, deseja que todos sejam também e não dá pra querer isso ignorando toda a realidade que a maioria do mundo vive.


Enquanto você está lendo esse post, as 200 meninas que foram sequestradas na Nigéria em abril de 2014 ainda não foram encontradas, as crianças sírias refugiadas no Líbano estão morrendo de frio por conta do inverno rigoroso e centenas de milhares de brasileiros ainda não têm acesso a saneamento básico e água (muito antes da Cantareira secar). Ao mesmo tempo, 1% da população mundial detém 48% da riqueza do mundo (fonte: Banco Mundial) e isso significa que você, eu e a Rose fazemos parte dos 99% restantes. Logo, estamos no mesmo barco, compartilhando os 52% restantes, e deveríamos nos ajudar ainda mais, certo?


Mas se você faz parte do 1%, por favor me liga, porque tenho sugestões bacanas sobre como investir o seu dinheiro e te fazer sentir REALMENTE feliz por SER. E não por TER.


E pra quem quiser ser parte da mudança, acesse o site do RONA Foundation, entenda mais sobre a história, os projetos e faça sua contribuição online, para que a Rose continue compartilhando a felicidade. Que agora é sua também.



Para saber mais sobre o Amani Institute clique aqui e para participar da campanha #StopWidowAbuse é só postar uma foto sua segurando essa frase (em um papel sulfite mesmo) e marcar a hashtag. Quanto mais fotos tivermos pelo mundo, mais chance a Rose tem de convencer os legisladores a dar mais atenção a esse tema.



Gabi.

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