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Experiência #2 - Gaborone, Botswana


Hoje completamos duas semanas fora de casa e já passamos pela África do Sul e Botswana. Chegamos em Gaborone, capital do país, na segunda-feira, dia 18, depois de viajar por sete horas de ônibus, saindo de Johanesburgo.


Devo começar dizendo que estou sendo surpreendida a cada dia. Por mim mesma e pelos outros. Por mim, porque estou lavando minhas roupas na pia diariamente, aprimorando meu inglês e o mais importante, porque estou me sentindo leve. Não emagreci ainda, mas a leveza deve estar relacionada à satisfação de estar 100% dedicada a algo que eu realmente acredito, ainda mais ao lado do meu grande companheiro de vida (e também por já ter me acostumado a usar calças que viram bermudas).


Mas como disse, também estou sendo surpreendida pelos outros. Pela África, que é muito mais incrível do que mostra O Rei Leão. Por Botswana, que é o país menos corrupto da África e é o 30o colocado na lista de um total de 177, preparada pela Transparency International (o Brasil ocupa o 72o lugar). Pela cultura, pelas leis e pelas pessoas. Principalmente pelas pessoas.


Aqui em Gaborone, tudo é bem diferente. Muitas das ruas são de terra, tem muito fast food e quase não vi prédios. Uma coisa é fato: o pessoal aqui AMA frango. Tem frango frito, com osso, sem osso, com molho, no pão, no wrap e com batata em quase toda esquina.


O país tem uma população de pouco mais de 2 milhões de habitantes, o que o torna um dos países menos povoados do mundo. Mesmo assim, Fê e eu escolhemos estar sempre na muvuca, claro.


Botswana se tornou independente do Reino Unido em 1966. No mesmo ano, entrou em vigor a sua Constituição, a qual, pelo que notamos, aguarda por reformas urgentes. Por aqui, ainda se admite a pena de morte, embora a própria Constituição assegure o direito à vida (legisladores…). Os serviços públicos parecem funcionar bem e o país está em pleno desenvolvimento.


Tudo isso nós aprendemos com o Ishmael, nosso mais novo melhor amigo de infância, que nos acolheu desde o primeiro dia por aqui. Inclusive, não tem como não ter certeza de que alguns anjos estão com a gente nesta viagem. Ishamel é um deles. Ele é botsuano, de uma cultura chamada Kalanga. Viveu por oito anos na Inglaterra, onde se formou em direito, e agora está de volta com a família.


Ishmael é o irmão da dona do lodge em que nos hospedamos e gentilmente se dispôs a ser o nosso relações públicas e guia turístico em Gaborone. Contamos sobre o Think Twice Brasil e ele, incansavelmente, nos levou de ponta a ponta da cidade, passando por vilarejos, ONGs e todos aqueles lugares que os turistas não conhecem, com paradas estratégicas para franguinhos fritos, enquanto conversámos sobre política e transformação social.


Foi assim que conhecemos a Ditshwanelo Human Rights, uma organização sem fins lucrativos que desenvolve um trabalho incrível de defesa e promoção dos direitos humanos. Fomos muito bem recebidos pelo Sefemo Mokalake para uma conversa sobre o cenário atual do país e os desafios que enfrentam a cada dia.


Ficou claro que a Constituição precisa de atualizações, principalmente no que diz respeito aos direitos humanos. Algumas contradições e muitas omissões acabam dificultando a evolução da sociedade. Uma delas é o fato de retaliações físicas serem permitidas por lei, podendo ser, inclusive, aplicadas a crianças pela própria escola. A velha e famosa palmatória…


Perguntamos a ele se havia um movimento efetivo, por parte da Ditshwanelo, em prol da reforma da Constituição e ele nos respondeu que a inércia da sociedade civil acaba se colocando como uma barreira para a discussão desse tema. Ishmael se contorceu na cadeira e nos surpreendeu quando demonstrou sua indignação com o descaso da população em relação a política e as leis. Não sei porque, mas Fê e eu ficamos com a sensação de que sabíamos exatamente o que ele estava sentindo…


Enquanto isso, outra curiosidade sobre Botswana é o fato de ainda aplicarem o que chamam de Customary Law (pode ser entendido no Brasil por Direito Consuetudinário) no julgamento de determinados assuntos. A Customary Law se aplica a quase 80% dos casos, pois é uma alternativa de acesso à justiça àqueles que não têm condições de arcar com os honorários de um advogado. Isso ocorre pois nas “Customary Courts” o caso é julgado por um cidadão comum, que na maioria das vezes se apresenta como um dos líderes da tribo, sem necessidade de assistência de um advogado. Os julgamentos não são feitos com base em leis codificadas, contando única e exclusivamente com os precedentes e o bom senso do julgador, o que nem sempre termina em decisões efetivamente justas.


Falando em justiça, também tivemos a chance de conhecer a vila Tlowaneng, onde ainda se vive com água do poço, da criação de animais e as pessoas parecem estar esquecidas por aquelas que vivem na cidade. Por lá, as casas são muito simples. Poucos cômodos e muitos moradores. As crianças caminham por horas até chegar à escola. Conversando com uma chefe de família – que correu pra trocar de roupa quando pedimos uma foto – ela nos disse que seu maior sonho é que seus netos levem a educação a sério, para que possam tomar decisões importantes e melhorarem suas vidas. O vídeo que fizemos e está ao final do texto mostra um pouco dessa conversa.


Continuando nossas andanças com Ishmael, conhecemos outra organização. A BOSASNet – Botswana Substance Abuse Support Network, que trabalha com a prevenção e acompanhamento de jovens e adultos dependentes de álcool e drogas. Botswana trata o abuso de álcool como assunto de saúde pública, pois é dai que surgem outros problemas, como altos índices de contaminação por aids, gravidez na adolescência e prática de atos violentos. O desemprego também contribui para o abuso do álcool. Os jovens começam a beber desde muito cedo e observando isso, alguns cidadãos resolveram se reunir e fundar, em 2008, a BOSASNet, que consegue mostrar a esses jovens que dá para se divertir sem usar drogas e álcool.


Kegomoditswe Manyanda e Isaac Tokonyane, depois de nos contarem um pouco sobre a organização, nos convidaram gentilmente para participar de uma celebração aberta ao jovens e suas famílias, que aconteceria no sábado. Aceitamos o convite e acabamos participando como voluntários no evento. Foi quando conseguimos notar o impacto positivo que o trabalho da BOSASNet gera para a comunidade. Teve dança, teatro, karaokê e hot dog, tudo pra comprovar que ser feliz não depende de nenhuma substancia. Talvez só de chocolate, no meu caso…hehe

Mas não pensem que fomos bem recebidos em todas as organizações. Em duas delas ficou claro o descaso e a falta de paciência para sequer nos contar o que fazem. Isso mostra o quão importante é termos pessoas trabalhando no Terceiro Setor e efetivamente envolvidas com as causas. E na real, isso vale pra qualquer área. Ter consciência de que cada função tem uma importância significativa para que toda a engrenagem funcione bem, deveria ser uma premissa para todos. E isso se reforça no caso de todas as instituições que sobrevivem de doações e deveriam ter como parte significativa dos seus objetivos estarem sempre próximas da sociedade.


Depois de viver tudo isso, voltando pra casa e pensando no que contaríamos a vocês, ainda não estava totalmente convencida de qual seria o relato da Experiência #2… parecia que faltava alguma coisa, sabe? Talvez faltasse só organizar a enxurrada de ideias e novidades.


Ou talvez eu ainda estivesse esperando entrar no meio da savana africana e conversar com meninas empreendedoras ao som da música de O Rei Leão. Um pouco daquela visão viciada de quem não conhecia a África, como eu, e achava que tudo se resumiria a criança passando fome e bichos no safári.


Foi quando, conversando com Ishmael sobre direito, política, pessoas, cerveja e etc., ele nos diz: “Eu ainda serei Presidente deste país. Quero trabalhar pelo meu povo e dar a eles a vida que merecem.


Pronto. Ishmael ligou os pontos e se apresentou como a grande inspiração da nossa experiência em Botswana. Se não bastasse ele mudar a nossa vida pelo tempo que estivemos por lá, ele ainda queria mudar a vida de todo o país.


Foi quando ele perguntou se voltaríamos pra Botswana e eu respondi que sim, quando ele se tornasse presidente. Ele riu. E eu tenho certeza que vamos voltar.

Gabi.


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