top of page

Experiência #20 - Irã



O avião pousou e caminhamos até a imigração. Na minha vez, o policial pediu que eu cobrisse a cabeça com o xale que estava no meu pescoço e assim seria pelos próximos dias.

Chegamos ao Irã.


Nosso primeiro dia em Teerã, a capital do país, foi bastante desconfortável pra mim. Um frio absurdo e eu com a minha única roupa quente da viagem – um moletom verde água bastante discreto e todas as outras blusas por baixo. Andando pelas ruas eu parecia estar sendo julgada por algum crime que nem imaginava ter cometido. Os olhares de reprovação vinham de homens e mulheres e eu não entendia o porquê. Talvez pela combinação de cores – do xale rosa com o moletom verde – mostrando toda a brasilidade que quase não se vê entre as mulheres de lá, que só usam preto e outras cores escuras. Mas em compensação carregam na maquiagem, que é a única maneira que encontram de expressar publicamente sua vaidade, pois apenas o rosto pode ficar exposto.


O ano de 1979 no Irã foi marcado pela Revolução Islâmica que surgiu, inicialmente, como um movimento em prol da democracia, cujo objetivo principal era condenar o estilo de vida e governo adotado pelo Xá Reza Pahlevi, que na época estava à frente do país, e instaurar melhores condições para a população iraniana.


Ao final da revolução, o Xá foi deposto e Ruhollah Khomeini, mais conhecido como Aiatolá Khomeini, assumiu o cargo de líder religioso e político. Acontece que o desejo de renovação e liberdade alimentado pelo povo acabou em novas proibições, restrições e muito medo. Entre as novas regras, o consumo e a venda de qualquer bebida alcoólica foi proibida, assim como filmes e músicas ocidentais, e o uso do hijab (o xale da cabeça) passou a ser obrigatório para todas as mulheres, inclusive turistas.


Essas características somadas a uma população de maioria absoluta muçulmana fazem do Irã um prato cheio para preconceituosos e desinformados. De qualquer forma, assim como em tantos lugares, lá existe muita coisa a ser melhorada e, pra variar, os direitos (ou falta de) da mulher na sociedade lideram essa lista.



Sempre que perguntávamos aos homens iranianos que conhecemos lá sobre a igualdade de gêneros, todos respondiam em coro: “Aqui todo mundo é igual!!! As mulheres podem até trabalhar e dirigir!” O engraçado foi que logo após ouvirmos uma dessas frases, conhecemos um senhor muito simpático e quando estendi a mão para cumprimentá-lo ele se recusou, porque de acordo com o Alcorão, os homens não podem tocar mulheres que não sejam suas filhas ou esposas…


Falta muito para a tal igualdade, né?! Mas nesse caso, pelo que entendemos conversando com os iranianos, o papel da mulher e a forma como ela deve ser tratada estão exclusivamente relacionados aos fundamentos religiosos que seguem. Quem pratica com mais fervor, segue à risca todas as normas. Isso nos dá a impressão de que uma mudança efetiva da condição da mulher nesse caso só seria possível a partir de uma reforma profunda dessas premissas.

Foi daí que, logo no início, já me surgiu a primeira reflexão dessa experiência: os homens por mais empáticos que sejam à nossa causa, não estão sujeitos a olhares repressivos, sedentos e julgamentos preconceituosos daqueles que nos fazem sentir pequenininhas ou uma picanha com vinagrete. Ainda falta muito pra todos termos uma consciência real do que significa a tal igualdade. Refiro-me as próprias mulheres também. Não dá pra batalhar por causas como essa se no dia a dia nós, mulheres, julgamos umas as outras por suas condutas “comprometedoras” e os homens recorrem a xingamentos sexistas para condenar uma mulher que não agiu de acordo com a sua vontade ou opinião.


Como eu tenho muita sorte, logo o Fe se convenceu de que algo “diferente” acontecia ali e aproveitamos o frio para comprar um sobretudo preto pra mim, na altura do joelho, que me fez sentir mais à vontade para completar a etapa do Irã.



O traje usual das mulheres por lá é o bendito sobretudo, na maioria das vezes em tons escuros e sóbrios, capaz de cobrir os braços e o bumbum, evitando que as curvas das mulheres sejam acentuadas. No verão a opção é a mesma, só muda o tecido. Além disso, como já disse, o uso do hijab é obrigatório por lei e o não uso costuma terminar na delegacia (Irã e Arábia Saudita são os únicos países que adotam essa lei).


Com todas as meninas que conversei, tentei instigar o auto questionamento perguntando a elas sobre o que achavam do uso obrigatório do hijab, como era viver no Irã e o que gostariam de mudar. Não foram muitas, mas a maioria disse não gostar de não poder vestir o que quiser, nem usar os cabelos soltos, mas se sentem impotentes para mudar esse cenário já que essas normas estão relacionadas à lei islâmica, que não pode ser alterada e cujas disposições são a base de todo o governo.


Uma das meninas me deu respostas curiosas. Ela é parte de uma família bastante religiosa e por conta disso, além do hijab ela deve usar também o xador, aquele manto preto largo que cobre tudo da cabeça aos pés, deixando apenas o rosto de fora. Fui enxerida e fiz várias perguntas. Pra ela o uso do hijab e xador é algo com o qual não é possível lutar e por isso ela simplesmente aceita, sem qualquer resistência. Ao mesmo tempo, parece contraditório, mas no carro ela ouvia um rock pesado e dizia adorar festas em casa, onde as meninas se permitem tirar o hijab e vestir o que quiserem. No final, eu perguntei se ela tinha alguma curiosidade sobre a minha vida no Brasil e recebi um sonoro “NÃO, obrigada”! O que me deixou com cara de paisagem e me fez pensar que pra ela, talvez seja menos inquietante continuar sem saber como é o mundo fora de lá.


Para nós ocidentais, o uso do hijab e xador é uma repressão tremenda e absurda. Mas pra mim, que pude sentir na pele, me pareceu apenas mais uma forma de tornar a mulher refém de algo imposto pela sociedade, assim como acontece com os padrões de beleza e o machismo velado.

Mesmo com todas essas diferenças, tivemos experiências incríveis por lá. Em nossa visita ao Tehran Peace Museum (“Museu da Paz de Teerã”) pudemos compreender mais sobre guerras, regimes autoritários, o uso de armas químicas e os efeitos nocivos sentidos por várias gerações. Se não bastasse, ainda conhecemos o Ali Ahmadi Dastjerdi, um jovem voluntário proativo e apaixonado pelo Brasil. Foi graças a ele que rodamos a cidade e imergimos na cultura iraniana.



Na companhia dele e da Malaley Habibi, uma afegã refugiada no Irã, visitamos uma organização incrível, a ILIA School, que acolhe e educa crianças afegãs que, na maioria das vezes, vivem excluídas no país.


O Irã faz fronteira com vários países, entre eles Afeganistão, Paquistão e Iraque, o que facilita a migração de refugiados que chegam ao país em busca de condições menos extremas do que aquelas que se experimenta em zonas de conflito e campos de refugiados. Essas pessoas são completamente marginalizadas e só é possível conseguir um trabalho formal ou frequentar escolas e universidades se conseguirem a documentação expedida pelo governo, o que, pra variar, tende a ser uma tarefa quase impossível.



Observando essa realidade, a professora Monireh Arezoomandi decidiu intervir em favor de quem é invisível para o resto do mundo e fundou a ILIA. Ela não cobra absolutamente nada dos alunos e além de todas as matérias obrigatórias, as crianças também aprendem sobre a história do Afeganistão, para que sejam capazes de conhecer e cultivar suas origens.


Para a Prof. Monireh o maior desafio é reeducar as famílias de modo que as meninas, principalmente, cresçam mais conscientes. Isso porque ela acredita que essas meninas, quando se tornarem mães terão condições de transmitir sua força, consciência e lucidez para os filhos e assim se inicia uma lenta revolução que coloca a mulher no centro das mudanças necessárias para alcançarem uma sociedade – e uma forma de governo – muito menos repressiva, desigual e muito mais inclusiva e coexistente.


Eu fiquei bastante emocionada com a visita e mais do que nunca pude entender melhor como é a vida de milhares de pessoas que vivem em zonas de guerra e são completamente reféns da sorte para sobreviver.


Em uma das salas de aula que entramos, as meninas estavam aprendendo inglês e a nossa chegada foi uma festa. Elas me ajudaram a arrumar o hijab, disseram quais profissões pretendem seguir e até cantaram uma música em inglês. Enquanto distribuía as fitinhas do Think Twice Brasil ouvi de uma delas um sonoro “I Love You”! Caímos todas na gargalhada como uma grande manifestação de amor gratuito. Para aquelas meninas, que desde pequenas já guardam histórias sofridas e uma luta incansável pela sobrevivência com dignidade, ouvir um “eu te amo” tão espontâneo me mostrou que para muitas pessoas o simples fato de ser enxergado por alguém já é uma enorme prova de amor.



Eu arrisco dizer que esse é o mesmo amor que circula com timidez pelos corações iranianos. O amor à vida e à oportunidade de fazer dela uma escolha especial e individual, ao invés de imposições e regras opressivas.


Com tantas proibições, o povo segue obedecendo, mas esperançoso de que um dia as coisas mudem. Para outros, enquanto cumprem com os protocolos nas ruas, aproveitam para quebrar regras dentro de casa com reuniões divertidíssimas regadas a vinho e cerveja feitas em casa, música pop, meninas circulando com os cabelos ao vento e jovens se exibindo com cigarro.

E como isso muda! Os semblantes sisudos e hostis que caminham pela cidade se transformam em sorrisos largos e risadas demoradas. Dentro de casa é onde se encontra um pouco da liberdade que lhes foi tirada.


Nós tivemos a chance de conhecer esses dois lados opostos e viver experiências inspiradoras graças aos amigos que fizemos por lá e isso me fez concluir, uma vez mais, que experiências são marcadas simplesmente pelas pessoas que fazem parta dela. Nada além disso.


Nossas lembranças, saudades e memórias estão sempre relacionadas às pessoas que, em algum lugar do mundo e em algum momento da vida, despertaram algum sentimento na gente.

Isso vale pro bem e pro mal. Da Etiópia, por exemplo, saímos desapontados por termos sido engolidos pela hostilidade de uma grande cidade como São Paulo, sem que ninguém se dispusesse a nos mostrar a verdade daquele povo. Já em Angola foi diferente… o país mais pobre que conhecemos foi o que mais nos deixou lições de generosidade, mesmo ainda se recuperando de uma guerra civil que durou muitos anos.


O mesmo aconteceu com o Irã. Um país muçulmano, mulheres aparentemente reprimidas e um povo que parece estar sempre em alerta. Mas o que encontramos foi um país seguro, em que as pessoas parecem cuidar umas das outras e se organizar em silêncio contra tudo aquilo que lhes tira a liberdade, além de uma cultura encantadora que vai muito além dos tapetes persa.



Isso tudo só foi possível graças à generosidade das pessoas com quem cruzamos e que nos acolheram como se fossemos parte da família. Isso reforçou a minha crença de que pequenos atos podem gerar uma cadeia virtuosa de bons sentimentos e boas lembranças em nós e nos outros. Como já dizia a raposa do Pequeno Príncipe, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” e que bom seria se só cativássemos e cultivássemos o bem, né?


Somos lembrados por nossos atos e palavras e por meio deles nos tornamos exemplos a ser seguidos. Ou não. Em momentos como este que estamos vivendo, nunca é demais lembrar que estar vivo, por si só, já impacta a vida de muita gente. Então seria bom se todos usassem suas vidas como um instrumento de impacto positivo, cada um a sua maneira.


Já saímos saudosos do Irã e conscientes da lição que aprendemos traduzida em uma das minhas frases preferidas, embora eu não saiba quem é o autor (quem souber por fontes confiáveis me conta?!): “Seja forte, você nunca sabe quem está inspirando.” (“Be strong, you never know who you are inspiring.”)


Força pra nós!


PS: Pra quem quiser e puder contribuir coma ILIA, basta enviar um email para  info@iliacharity.com e encontrar a melhor forma de colaborar para que mais crianças enxerguem um futuro com mais luz e menos sofrimento.


Gabi.

bottom of page