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Experiência #37 - Coréia do Norte


Sim, a Coréia do Norte foi uma das experiências mais intensas e estranhas que vivi, mesmo tendo recentemente passado por muitos lugares com a intenção de ir ao mais extremo possível na realidade de cada um. Ciente das barreiras que o poder impõe, eu tinha uma expectativa esperançosa de esclarecer interrogações, mas a verdade é que saí de lá com ainda mais mistérios e uma coleção de questionamentos. Nunca quis tanto voltar pra um lugar logo depois que sai. Se essa sensação for de propósito para promover o turismo a estratégia deles é realmente de mestre.


Agora esclareço sua dúvida inicial. É simples ir pra Coréia do Norte como turista, basta falar com uma agência credenciada para coordenar cidades e datas, escolher trem ou avião, mandar uma foto do passaporte e pagar. Por favor, só não seja jornalista, nem fotógrafo, eles podem não querer que você vá. A viagem funciona com um pacote onde tudo está incluído, exceto a gorjeta. No nosso caso, como fomos no aniversário de 70 anos da libertação, participamos até de um festival de dança com vinte mil pessoas.



Nos dias em terras norte-coreanas existem regras bem peculiares. Você estará sempre com dois guias e um motorista, só dentro do hotel você pode ir da recepção ao quarto e ao banheiro sozinho, ufa! Ai já começou nossa flexibilidade para ter que mudar o estilo de viagem, porque caminhar pelas ruas por horas é uma das nossas atividades preferidas. Você só pode tirar fotos autorizadas, não é permitido tirar foto de militares, construções e certos lugares. Também existe um discurso protetor esquisito dizendo que pessoas nas ruas não gostam de ser fotografadas, então não o faça. Você não pode se referir ao líder do país apenas pelo nome próprio, você deve usar uma referência gloriosa e bajuladora em conjunto, como presidente, marechal, comandante, chefe, líder supremo, mestre, Nostradamus, sabichão, manda-muito ou simplesmente lindo. (Até o mestre é sério). Outro detalhe é que qualquer papel com foto dele não pode ser amassado, nem dobrado – ainda bem que não achei chiclete com foto dele no papelzinho, é instintivo amassar esse vai…


Breve história. A Coréia, quando ainda era um único país (norte e sul), foi ocupada pelo Japão de 1910 a 1945. Ao final da Segunda Guerra Mundial nasceu a divisão, quando o norte ficou com a União Soviética e o sul com os Estados Unidos. Em 1950 a Coréia do Norte invadiu a do Sul e começou outra guerra, o Estados Unidos ajudou o sul e a China ajudou o norte, até que em 1953 um cessar-fogo foi acordado. Desde então cada uma tomou seu rumo, a do Norte pelo socialismo Marx-Lenin, seguindo seus melhores amigos União Soviética e China, enquanto a do Sul pelo imperialismo do Tio Sam. Mesmo com esses novos horizontes, ambas ainda não se dão muito bem, o que pode se tornar sério a qualquer momento. Inclusive, dois dias depois que saímos de lá o negócio esquentou, segundo o noticiário…



Foi nesse ano que Kim Il Sung tomou a frente do país e sua forma de estado começou. Eles se declaram socialistas e acredito que podem ser o modelo existente mais próximo ao conceito de socialismo e comunismo. Já até expuseram imagens de Marx e Lenin nas ruas, mas, com o tempo porém, o ego e o poder começaram a decidir mais e o modelo passou a ser híbrido, com óbvias práticas de totalitarismo, autoritarismo, fascismo, tirania ou como queira chamar… Acho que a maior “inovação” deles é a forma de governo criada, a ditadura familiar, pois após o falecimento do primeiro líder em 1994 seu filho, Kim Jong Il, assumiu e após o seu falecimento em 2011 seu filho, Kim Jong Un, assumiu e é o atual mandachuva. Mas não se trata de nepotismo, foi uma coincidência hierárquica por aptidão… O mais irônico é que eles se autodenominam como República Popular Democrática da Coréia, o que comprova, perante qualquer júri, que essas nomenclaturas tentam ludibriar alguém. Deu vontade de presenteá-lo com algumas folhas do dicionário com os sinônimos de “voto universal”, “direitos iguais” e “liberdade” grifadas.



Um ponto fundamental aqui é que modelos de “socialismo híbrido”, como esse, são os grandes responsáveis pela imagem corrompida que o socialismo original ganhou no último século. Ele se perdeu no ego do líder, na concentração de poder e na leve abertura para o mercado livre se rendendo à outras práticas. Cuba acabou de começar essa etapa. Independentemente do discurso direita-esquerda, reitero o que escrevo frequentemente. O que o sistema capitalista oferece hoje, é injusto, desigual, beneficia a minoria que está no poder e que sustenta a propaganda de que é o melhor formato de sociedade que existe. O setor público com discursos ludibriadores como “crescimento econômico gera mais emprego” e o setor privado com “nossa empresa é ética”…


A devoção ao chefe de estado é evidenciada por diversos fatores, o primeiro é que Kim Il Sung criou a ideia Juche. É uma ideologia que busca ser tão superior e presente que, além de ser um pilar do estado, é considerada uma religião para o povo. A verdade é que eu gosto e concordo plenamente com a sua curta definição, na qual “o homem é o mestre do seu destino”. Porém, além de afirmarem estranhas provas científicas por trás dela, para me tornar um “Jucheiro” convicto eu precisaria participar do culto para entendê-la a fundo. Sem duvidar, de forma alguma, da boa fé de ter criado essa filosofia de vida, mas será que existem mecanismos para manter as pessoas fiéis à adoração? Não sei, mas tenho esse receio.


Outro fator que dá base à essa adoração exagerada é que por todos os cantos da cidade existem monumentos, estátuas gigantes, imagens e palácios venerando os dois líderes falecidos e se gabando da guerra. Existe até uma música pelas ruas e carros com alto-falante fazendo propaganda de carinho a eles. Pra que você sinta a profundidade dessa submissão, pense num monstruoso palácio construído apenas para contar a história dos dois, com todos os presentes e condecorações que ganharam e um mapa gigante iluminado contando a rota de viagem. Considere que roupa social é obrigatória (jeans é proibido) e você passa por pontos de higienização, escadas e esteira rolantes com segurança por todo lado. Uma hora até me pararam e me pediram pra revistar carteira no meu bolso (achei que era empréstimo). Dentro dele há duas salas homéricas com luzes vermelhas, militares nos quatro cantos e uma canção fúnebre ao fundo, ao centro de cada uma delas você tem que prestar reverência há um caixa de vidro com o corpo embalsamado dos líderes deitados. Dá pra sentir?


Esclareço que esse relato tem o objetivo de sustentar a minha opinião sobre o que aprendi, não é debochar dessas pessoas que se foram.


Uma realidade muito impactante, para os meus padrões, eu vi nas ruas de Pyongyang, a capital, e redondezas. Não se vê propaganda de marcas, é difícil ver lojas, como de roupas e eletrodomésticos (vi uma de cada), tem poucas barracas de comida nas ruas, mas não se vê supermercados, não vi bancos, muito menos caixas eletrônicos. Muito maluco não ver aquelas tentações de compra a cada esquina. Admirei muito. Isso é em razão de traços socialistas mantidos, pois todas as empresas são públicas ou público-privadas e há mais leis na esfera do consumo, como a que proibi a importação de artigos de luxo. No interior quase não se vê carro, raramente se via um durante o percurso de trem da fronteira da China até a capital, que durou quatro horas. Se vê muita gente caminhando e de bicicleta. A princípio me pareceu uma qualidade de vida, mas depois de ver ônibus cheios e andar no metrô bem antigo fiquei mais pensando se não pode ser uma defasagem no desenvolvimento.



Alguns detalhes que nutrem o lado misterioso: vi muitas pessoas trabalhando na rua e no campo, limpando áreas que pareciam mais mato do que plantações; nas águas rasas dos rios se via gente lavando roupa ou tomando banho; não se via ar condicionado nos prédios; as refeições que nos ofereciam eram banquetes nos quais o desperdício de comida ao final era desesperador (nota: o país teve um surto de fome nos anos 90 quando até ajuda da ONU foi necessária); em nossas caminhadas, com guias claro, encontramos dinheiro “perdido” no chão por três vezes e ao perguntar nos instruíam a não pegar, pois nunca o fazem por ser errado.


Falando dos guias, tentei construir um relacionamento frutífero (bela expressão hein), mas vale explicitar a minha decepção. A grande maioria das perguntas tinham respostas evasivas e utópicas, como afirmando, por exemplo, que não existe desemprego nenhum e que tem internet (sendo que não tinha nem pra turista num hotel de alto padrão). Sobre canais de televisão e jornais de fora, ouvi a explicação que preferem não ter porque as Coréias ainda não se reunificaram (?) e que as emissoras estatais dão as notícias sobre o mundo. Não resisti em perguntar sobre a única informação que se ouve nas emissoras internacionais sobre o país, se eles têm arma nuclear, e a resposta foi “positiva”, que têm. Intrigante vai?



A dúvida mais enraizada que fica é se os guias sabem algumas verdades e não podem falar ou se o sistema onde vivem é realmente organizado suficientemente para fazer até eles acreditarem nessas utopias. O que acha?


Precisamente a partir dai meus questionamentos e dúvidas sobre como é a vida dos cidadãos lá, o que funciona e o que não funciona viraram uma ilusão. Me senti num emaranhado de sensações como andando num parque de diversões onde tudo tem que ser maravilhoso, assistindo uma campanha eleitoral ao fundo onde te prometem tudo melhor e com o gerente do banco ao lado dizendo que aquele produto é perfeito para o meu perfil. Me senti enganado, sendo totalmente sincero.



Virou um desafio argumentar sobre a realidade do país porque além dessas respostas padrão, eu, como estrangeiro, estou num fogo cruzado de informações, onde os norte coreanos estão explicitamente defendendo a imagem do seu país perante o mundo, enquanto todo o resto do mundo, liderado pelos meios de comunicação do “primeiro mundo”, tentam convencer todos que a Coréia do Norte é um perigo global. Mas e ai, que lado mente mais por interesses pessoais e quem é mais perigoso? A globalização capitalista que concentra o poder em poucos cada vez mais e quer extinguir o socialismo ou um país socialista que quer se defender disso para manter sua ideologia? Depois de tudo o que li de fontes variadas sobre a Coréia do Norte, entendi que até avisar o mundo que tenho arma nuclear pode ser a única defesa eficaz para evitar que o imperialismo de outro país tome conta do seu, como aconteceu no Iraque. Dá um pouco de desespero pensar que a humanidade regressou a esse ponto, mas temos que ser realistas.


Antes que você contra argumente com o quesito opressão e privação de liberdade, quero dizer minha opinião. A propaganda adoradora promovida é um forte indício de que qualquer opinião negativa está passível a punição, concordo, mas quem garante como isso acontece? Nos documentários que encontrei, nenhum transpareceu ter fontes sólidas o suficiente para provar que existem campos de desertores com trabalho escravo, por exemplo. Obviamente que se realmente há é indiscutivelmente absurdo. Mas como todo esses julgamentos baseados em possíveis fatos, podem ser justos? Já ouviu falar de Guantánamo? É uma prisão militar americana em solo cubano construída para prender “possíveis culpados” de guerra e terrorismo sem julgamento. Está em funcionamento hoje e segundo a crítica pode ser um campo de opressão e tortura tão desumano quanto qualquer outro. Mas e ai, quanta gente sabe e julga seus responsáveis? Porque será que esses mesmos meios não falam sobre isso com o mesmo discurso. Será coincidência que quem tem autoridade sobre Guantánamo é amigo de quem decide a pauta do jornal? Tudo são interesses hoje, então precisamos ter cuidado na interpretação e julgamento.



Reitero que sou absolutamente contra qualquer política covarde que pune a liberdade de expressão e o pensamento livre, isso é uma afronta ao direito fundamental, um desrespeito a qualquer ser humano e tem que acabar. Mas com esse conflito de interesses confuso como posso acreditar em qualquer lado?


Bom, independentemente desse veredito, tenho total segurança em afirmar que discordo da adoração forçada à personalidade que existe. Não acho correto exigir que pessoas vivam em função do passado e do que uma pessoa fez. Evidente que toda demonstração de respeito e admiração pode ser devida, mas as toneladas de dinheiro, trabalho humano e recursos naturais investidas na construção de intermináveis obras de homenagem são um exagero. Tenho certeza que centenas de melhorias precisam serem feitas. Quando uma guerra que terminou há mais de sessenta anos é o maior motivo de orgulho de um povo a ponto de lembrá-la todos os dias, parece que pararam no tempo, vivem num passado que já acabou e não é mais real. E o transporte público, e a educação, e a saúde como vai? Quais os objetivos do próximo século, o que precisam melhorar? Não pude entender nada disso, apenas que falta energia, pois os cortes eram frequentes.


Em conjunto com o discurso de guerra, a posição contrária ao imperialismo norte americano também é tratada abertamente, o que, na minha opinião, é agressivo demais. Dentro disso, vi um pequeno detalhe que foi o ponto alto das descobertas. Acredito que ser fiel aos seus princípios e ao que acredita é uma prova de consciência e credibilidade. Mesmo com todo esse posicionamento socialista, contra o imperialismo e o luxo, ao final da exposição no enorme palácio me deparo com um carro alemão de luxo que Kim Jong Il passeava e um grande iate com o qual ele trabalhava pelos mares. Pára tuuudo, que p… é essa? Era prioridade manter o ponto dele ou mostrar as posses? A cereja do bolo ainda estava lá, toda encabulada, sobre a mesa do escritório do iate. Quem, quem? – Prefiro não dizer marcas para evitar conflitos, mas essa é necessária para explanar a gravidade. – O estimado Mac book do líder. Sério, estou boquiaberto até hoje, não consigo nem comer direito ainda… Isso arrebatou qualquer crédito criado na minha cabeça pelo líder, uma prova de contradição. Mas e ai, será que era dele mesmo e ele fazia facetime com o Putin ou o setor privado já consegue fazer lobby até em ditadura familiar? Hahah… (Uma pena que foto é proibida lá dentro, então só acreditando em mim.)



A pergunta que fica de todos os mistérios e questionamentos é a seguinte: Caso não exista essa opressão, é melhor nascer numa terra encantada onde você precisa ganhar dinheiro e comprar tudo o que a propaganda privada faz você acreditar que precisa pra ser feliz ou numa terra encantada onde a propaganda estatal faz você acreditar que amar o líder e viver a sua ideologia é o que você precisa pra ser feliz?


Vou ler os livros que levei do Kim Il Sung contando suas teorias socialistas e do Juche, assim como os dez livros mais vendidos do mês nos mercados livres pra repensar melhor isso tudo. Ai, assim que voltar da minha próxima visita, escrevo de novo.


Felicidade é relativa e nenhuma das alternativas anteriores é a melhor. Precisamos de soluções que pensem em todos, de uma terra onde o senso comum diz que ninguém quer acumular poder ou dinheiro porque não faz bem, que ver a realização dos outros realiza a si mesmo e que o ego parou de atrapalhar as prioridades de cada um. Ai quem sabe o livre arbítrio consegue se divertir com mais consciência!


Nota: Enfatizo que esse texto é baseado na experiência que tive de cinco dias na Coréia do Norte, o que vi, ouvi, entendi e pude aprender. Tudo baseado na minha opinião, especialmente ponderada à manipulação de informações que vivemos. Respeito esse povo e agradeço por terem nos tratado muito bem.


Felipe.

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