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Como nos relacionamos com a certeza de tudo.



Esse relato é mais uma confissão de suplício de alguém preocupado por e para qualquer outro ser (consciente ou não).


Quando tomo uma chacoalhada de certas informações fico pensando e repensando… Estou agoniado porque existe algo que me incomoda cada vez mais e que requer um desabafo e uma ação.


Antes, peço que respire fundo, se esforce para colocar conceitos prévios (ou preconceitos) numa gaveta, se proteja de qualquer julgamento e esteja presente. Acredito que nosso Ego Pensante é insistente e mestre em convencer nosso Ego Consciente de que já sabemos as coisas e que nossa opinião é mais certa sobre o assunto. O que significa que se o Raciocínio persuadir a Consciência nos bloqueamos, para não aprender.


Certo dia, uma amiga tinha sido picada por algum inseto na rua e seu pé inchou consideravelmente. Momentos depois, ao especularmos entre amigos o que teria causado isso, eu insisti em dizer que não sabia e que deveríamos ir ao pronto socorro checar. – Não tinha nenhum médico infectologista, veterinário ou biólogo na roda… – Uma das amigas, de repente, afirmou com certa convicção que era um marimbondo. Fiquei espantado, pois estávamos juntos quando começou a dor e ninguém tinha notado nenhum suspeito… Ao brincar, eu disse “Por que então não foi uma abelha?” (porque pela minha experiência, abelhas e marimbondos são primos por natureza) e ela, buscando fundamentar seu ponto, respondeu séria, mas em tom tímido: “Porque marimbondos voam baixo e abelhas voam alto.”.


Foi um impacto muito grande pra mim, perceber como em situações tão irrelevantes somos dominados pela vontade de ter razão.


Maior que isso, meu incômodo é que estamos desrespeitando a nós mesmos. Os fatos estão cada vez mais lúcidos, explícitos e desesperados, mas concentramos nossa coragem em ignorá-los, em viver na realidade artificial criada individualmente por nós e atender desejos desnecessários e inexplicáveis. No caso, o desejo de estar mais certo do que o outro numa conversa.


Caracterizo os desejos desta forma, pois, como aprendi com a Comunicação Não Violenta, o desejo é uma estratégia para satisfazer uma pseudonecessidade, já que não é essencial para a vida. Ao passo que uma necessidade é fundamental pra se viver. Por exemplo, luxo e fama são desejos, se alimentar e dormir são necessidades.


Essa aceitação ao auto desrespeito há muito me toca, pois não consigo tolerar a forma como nos relacionamos com as informações, as quais estão cada vez mais acessíveis para livre entendimento.


Como o bioquímico Rupert Sheldrake bem escreve em seu artigo Evolutionary Habits of Mind, Behavior and Form: “As coisas começam como frescas, novas, ideias surpreendentes, que através da repetição e sendo ensinadas em escolas e universidades se tornam cada vez mais habituais até que se transformam em presunções inconscientes, as quais as pessoas dificilmente estão cientes de que estão fazendo.” (em tradução livre). É como se simples opiniões passassem pelo processo de ressonância mórfica (discutido neste mesmo artigo de Sheldrake) e, em determinado momento ao longo do tempo, se transformassem em verdades absolutas inquestionáveis.


O que torna essa relação ainda mais dinâmica, é que num emaranhado de vontades perdemos a noção da responsabilidade da nossa intenção e da integralidade do todo.


Compreender a intenção que motiva cada ato é tangível e real, mas requer o hábito da presença no agora, da consciência. Por isso um novo senso comum se faz urgente, já que a época em que vivemos o sucesso de ser rico, poder comprar tudo e ser superior aos outros ainda é almejado e valorizado. Diariamente vejo da janela do meu apartamento helicópteros passando com frequência (uns vinte por dia, talvez) e quando saio pelas ruas vejo pessoas dormindo na calçada e passando frio. Como compreender tamanha incoerência?


O ecologista Stephan Harding, em seu livro Terra Viva, consegue explicar o que pode significar esse todo e também um momento marcante da história moderna para a informação. Ele discute como essa nova interação do humano com o conhecimento se consolidou na revolução cientifica na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) com pensadores como Bacon, Descartes, Galileu e Locke. Eles criaram um novo olhar, no qual a razão estava acima de tudo e a matemática, e seus números, era sua base. Assim o reducionismo mecanicista na ciência passou a dominar, ao passo que o Anima Mundi – o mundo ser vivo, com alma e inteligência, uma entidade singular contendo outras entidades vivas e interconectadas – desaparecia da consciência humana.


O filósofo David Abram também discute outro fator relevante desse momento revolucionário. Em seu artigo Impact of Metaphor in Science ele conta que, nesse interim, a instituição social e política dominante, a Igreja, conseguiu fortalecer ainda mais sua supremacia. Isso se deu por uma aliança com a ciência baseada nessa nova filosofia mecânica, na qual o mundo é uma máquina e consequentemente implicava na existência necessária de um criador divino, um Deus.


Com essas investigações diretas de Harding e Abram fica evidente que houve uma transformação profunda na forma como, nós humanos, compreendemos a informação e como a manipulamos por diferentes interesses. Isso não pressupõe uma crítica à religião, por ora, mas sim uma preocupação ao anseio por controlar a informação e de que o emissor passou a impor sua percepção e, consequentemente, uma sutil parcialidade ao emiti-la.


Como o físico Shantena Sabbadini cita em seu artigo Abstraction and Embodiment, a ideia do mecanismo das coisas nos permitia acreditar que poderíamos prever como tudo – sendo máquinas – funciona para assim controlar. Ele argumenta que essa vontade de controlar gera informações não processadas que vão pra inconsciência e esse acúmulo de ignorância, em determinado momento, gera um colapso e nossos valores perdem rumo para orientar nossos atos.


Essa ignorância intencional me entristece, pois sinto que entramos num ciclo de justificar o que não sabemos ao invés de aceitar a falta do saber, como o caso do marimbondo supracitado bem mostrou. A segurança enraizada por trás dessa falsa crença de autoridade, pra combater o medo do incerto, nos tornou cada vez mais dependentes de tentar controlar tudo o que está a nossa volta para acreditarmos que o futuro é previsível e não nos oferece risco algum.


Essa ideia de “colapso” de Sabbadini em conjunto com a de “inconsciência” de Sheldrake, mencionada anteriormente, convergem na realidade de hoje, na qual as pessoas se dominam pelo desejo de poder e satisfação do Ego Pensante, enquanto seus valores se escondem da consciência.


Com o passar do tempo, nosso modelo de desenvolvimento socioeconômico demonstrou consequências dessa séria influência cartesiana, como na principal teoria de Charles Darwin, a da Seleção Natural. De acordo com o matemático Brian Goodwin no artigo Darwin Revisioned, a evolução cultural e o progresso dependiam de um capitalismo de mercado “Com base em princípios econômicos definidos por Adam Smith, que assumiu a escassez de bens entre os seres humanos e competição por recursos escassos.” (em tradução livre). O que fundamenta, de forma drástica, a consolidação do individualismo dualista – no qual o Eu não é parte do todo – e como o egoísmo passou a ser naturalmente estimulado.


Como um resgate ao pensamento complexo conectado com o anima mundi, o entendimento e respeito à harmonia imperfeita e impermanência da natureza só foram gradativamente reinseridos na consciência por pensadores, como Edward Lorenz na década de 1970 com a Teoria do Caos, e assim revivendo a complexidade da realidade.


Hoje, nessa matriz de informação e intenção, como eu sugiro, outro mecanismo criado para a sociabilidade humana tem participação fundamental: o dinheiro. Como Sabbadini traz no mesmo artigo: “O servo [dinheiro] se torna o mestre: nossa própria invenção vira e nos escraviza.” (em tradução livre). A qualidade de troca universal dessa ferramenta social lhe conferiu uma máscara de felicidade que condiciona grande parte das nossas decisões e alimenta nossa avareza.


Assim, essa matriz se resume na relação entre a informação, a consciência da intenção e a necessidade financeira.


Esse colapso inconsciente pode ser a grande sustentação do sofrimento violento que o Anima Mundi vive hoje, com o desaparecimento crescente da fauna, extração inconsequente de recursos naturais finitos e seres humanos vivendo uma realidade cada vez mais incoerente.

Como Sabbadini coloca, em sua tradução do livro Tao Te Ching que interpreta o livro do Taoísmo, “Normas éticas são substituições pobres da sabedoria espontânea.” (em tradução livre) e sinto ai um chamado, para o ressurgimento da educação de uma nova ética consciente e conectada com o todo através da intuição, onde o sentimento de realização do todo é a única fonte de felicidade do uno.


Felipe Brescancini


Referências:

  • SHELDRAKE, R. Evolutionary Habits of Mind, Behavior and Form. In: LORIMER, D. (Org.). The Spirit of Science: From Experiment to Experience. Reino Unido: Continuum, 1999.

  • HARDING, S. (2006). Terra Viva: Ciência, Intuição e a Evolução de Gaia. Brasil: Cultrix, 2008.

  • ABRAM D. The mechanical and the organic: On the impact of metaphorin science. In: SCHNEIDER, S. (Ed.), BOSTON, P. (Ed.). Scientists on Gaia. Cambridge: MIT Press, 1991.

  • SABBADINI, S. Abstraction and Embodiment. Holistic Science Journal, v. 2, n. 4, 2015.

  • GOODWIN, B. Darwin Revisioned. Resurgence, v. 252, 2009.

  • SABBADINI, S. (2013). Tao Te Ching: a guide to the interpretation of the foundational book of Taoism. Estados Unidos: Lulu.

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