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Projeto Sulwe – Entre meninas, cadeados e novos sonhos

É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” – Provérbio Africano


O Brasil é o 4o país com a maior população carcerária do mundo. São mais de 600 mil pessoas e ficamos atrás apenas dos EUA, da China e da Rússia. Esse número é um sintoma assustador dos mais variados desafios que enfrentamos, enquanto sociedade.


Assim como nos EUA, a relação do Brasil com o cárcere é antiga e remete ao período escravocrata, que regulou e determinou nossa história de maneira profunda e silenciosa. Seguida à abolição da escravidão no Brasil, em maio de 1888, a vadiagem e a capoeira foram criminalizadas, passando a constar expressamente do Código Penal Brasileiro de 1890. Por vadio, entendia-se alguém que deixa de “exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite”.


Curioso pensar que logo após a abolição seria mais do que esperado se deparar nas ruas com escravos libertos em busca ou à espera de novas oportunidades, que demoravam a chegar por inúmeras razões, mas especialmente porque havia uma enorme resistência em se contratar e remunerar os mesmos trabalhadores que antes desempenhavam as mesmas funções de graça.

Foi assim que, orgânica e estrategicamente, a população carcerária brasileira começou a se compor majoritariamente de negros e cidadãos que viviam em escassez de recursos e possibilidades. Atualmente, no Brasil, 61,6% da população carcerária é composta por negros e 75% possuem até o ensino fundamental completo.

No Brasil, 61,6% da população carcerária é composta por negros e 75% possuem até o ensino fundamental completo

As mulheres representam cerca de 6% dessa população – mais de 37 mil – sendo que 2 em cada 3 são negras. Além disso, 64% são ré primárias e 68% foram presas por envolvimento com o tráfico.


Aqui cabe pontuar que esse tal “envolvimento com o tráfico” é motivado, na maioria das vezes, pela necessidade de complementação de renda ou aspirações de consumo. O que se verifica é que em grande parte das ocorrências, as mulheres se encarregam de pequenos serviços, como armazenar ou transportar a droga, com a intenção de oferecer condições mínimas aos filhos – 81% das mulheres em cárcere são mães.


Entre os adolescentes em conflito com a lei, o cenário não é muito diferente. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os adolescentes – de doze a dezoito anos – que cometerem atos infracionais serão submetidos a medidas socioeducativas, que podem variar de uma advertência formal à internação em um estabelecimento educacional.


Lindo desenho criado por uma das jovens do Projeto Sulwe


A internação do jovem é a última opção a ser considerada e, via de regra, só deveria ocorrer na impossibilidade de não se aplicar nenhuma das outras medidas. O prazo máximo de internação é de 3 anos.


Dentro dos estabelecimentos educacionais que acolhem os jovens em medida de internação, a escolarização e profissionalização são obrigatórias pelo ECA (art. 124, XI), complementadas por atividades culturais e de lazer. No entanto, de acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2015, não é o que acontece em alguns estados brasileiros, onde os centros de internação não estão capacitados para oferecer aos jovens o que lhes é de direito, mantendo-os ociosos e sem perspectivas de evolução.


Vale destacar que a trajetória de vida da grande maioria desses jovens é marcada por relações abusivas e pautadas na violência, ausência da figura paterna, escassez de oportunidades, de recursos financeiros e emocionais e um vazio de referências inspiradoras e possíveis. Não há como olhar para esses adolescentes sem considerar a história do nosso país, sempre marcada por uma profunda desigualdade, nem acolher os desafios que sequer imaginamos como seria possível superar. Empatia.


As circunstâncias que levam adolescentes a se perceberem privados de sua liberdade passam não só por questões individuais próprias da idade, da raça, do gênero e da condição financeira, mas também pela influência da família, da escola, da mídia e da comunidade em que estão inseridos.


No caso das meninas em conflito com a lei, o peso do estigma é ainda maior. Isso porque aos olhos da sociedade, essa jovem infratora contraria toda a doçura, fragilidade e recato que supostamente se esperaria de uma mulher.


Para essas meninas ainda acrescemos questões básicas de higiene e saúde, nem sempre conhecidas por elas. A violência doméstica – sexual, física e psicológica – é tida por muitas como prática comum e pouco questionada, acompanhada da busca profunda por sentir-se parte de um grupo, seja ele qual for. Se passar pela adolescência é uma fase complexa até pra quem usufrui de estabilidade emocional e financeira, imagina como é para os jovens que precisam administrar suas transformações físicas e suas vontades, além da falta de recursos, acolhimento e possibilidades.


Em São Paulo, a Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo do Adolescente), antiga FEBEM, acolhe mais de 7 mil jovens em medida de internação, de acordo com o Boletim Estatístico de janeiro/2017. Desse número, 67% são negros ou pardos e 303 são meninas. São mais de 140 centros espalhados pelo Estado de São Paulo, que trabalham desde o atendimento inicial até a internação.

A Fundação CASA acolhe mais de 7 mil jovens em medida de internação

A unidade Chiquinha Gonzaga, na Vila Prudente, em São Paulo, é um dos centros de internação feminino. Atualmente o Chiquinha acolhe cerca de 120 meninas de 12 a 20 anos privadas de liberdade, cuja média de internação é de 8 meses. Estabelecida no prédio de uma antiga escola estadual, o espaço é todo adaptado, dentro do possível, para acomodar quartos, banheiros coletivos, salas de aula e espaços de lazer.


Alguns dos servidores, educadores e psicólogas se entregam verdadeiramente ao trabalho desafiador de amparar, escutar, acreditar e preparar essas meninas para o “mundão”, como elas mesmas costumam se referir à vida em liberdade.


Como contribuir para que essas meninas recalculem suas rotas e usufruam do tempo em internação para resinificarem suas histórias e redefinirem os seus sonhos?


Foi com base nessa pergunta, mas principalmente movida por uma intuição inexplicável, que sonhei e realizei o Projeto Sulwe, com a autorização, confiança e apoio incondicional da diretoria e da coordenadoria pedagógica do Chiquinha Gonzaga.

Projeto Sulwe – Dialogar sobre Direitos Humanos, Equidade de Gênero e Empreendedorismo Social com meninas em conflito com a lei

Sulwe é estrela em suaíli, uma das línguas mais faladas na África, e que faz uma singela referência ao brilho único que cada uma de nós possui, mas que só reluz quando alguém nos enxerga e nos dá a possibilidade de reconhecer que dá pra brilhar mais forte.


Um projeto construído democraticamente com a participação ativa das meninas, no qual, juntas, dialogamos e refletimos sobre direitos humanos, equidade de gênero e empreendedorismo social a partir dos temas de interesse e curiosidades trazidos por elas.


Nossos encontros semanais, que acontecem desde janeiro/2017, começaram com dois grupos de 25 meninas e partimos da definição de empatia e a importância dessa prática para gerarmos transformação individual e coletiva. Em pouco tempo a palavra se tornou recorrente e surgiam cada vez mais relatos de como o olhar empático evitava reações agressivas, raivosas e desmedidas. Uma das justificativas para isso foi que “a gente simplesmente não sabe o que o outro tá passando, né?”. Simples e acalentador.

Empatia: “a gente simplesmente não sabe o que o outro tá passando, né?

Lindo desenho de uma jovem do Projeto Sulwe


E foi entre olhares desconfiados e abraços carinhosos, que juntas fomos percorrendo histórias inspiradoras de mulheres pelo mundo. Passamos por temas como mutilação genital, casamento infantil e mulheres refugiadas. Debatemos sobre como seria possível mudar culturas de opressão, hábitos machistas e a discriminação, em todas as suas formas. A cada nova semana, nos sentíamos mais à vontade para compartilhar histórias pessoais, acolher umas às outras e compreender os direitos humanos sob uma perspectiva literal, sem estereótipos e superficialidades. Nos descobrimos ativistas por várias causas e legitimadas para propor soluções para muitas delas.


No dia 6 de abril tivemos o encerramento do primeiro módulo de uma das turmas e para agradecer a perseverança e a confiança das 12 meninas que restaram no grupo, celebramos! Entre coxinha e brigadeiro, vivi um dos momentos mais mágicos da minha vida.


Fui surpreendida com cartazes coloridos e repletos de poemas e ilustrações. Elas cantaram, dançaram e discursaram sobre o que se sentiam ao final desse ciclo juntas. As palavras, os presentes e os abraços emocionados tem um valor imensurável e inexplicável pra mim. Foram essas meninas – as mesmas que a nossa sociedade discrimina, julga e marginaliza – que me deram o maior respiro de esperança e reconhecimento profissional que eu jamais imaginei ter na minha vida.


Cartaz criado por uma linda jovem do Projeto Sulwe


Educar uma criança e formar um adulto consciente requer a participação de toda a sociedade – ou de toda a aldeia, como diz o provérbio africano. As influências que recebemos durante esse período de descobertas são determinantes e deveríamos todos nos sentir responsáveis por marcar positivamente quem cruza nosso caminho.


Nossos jovens precisam ser ouvidos e nós precisamos nos convencer de que eles têm muito a dizer. Em um país marcado pela desigualdade, pela polaridade e pela superficialidade, passamos da hora de ampliar nossa zona de conforto e disposição para o diálogo com a geração que tem a chance de reconstruir nosso país, mas só o fará se estiver viva, em liberdade plena e usufruindo de oportunidades de escolha.


Por meio do Sulwe, desejo sinceramente que o desenvolvimento de um pensamento crítico, o despertar para uma consciência social e a responsabilidade por cada ato praticado possam atravessar a existência dessas meninas. Que possam se apropriar de seus talentos e habilidades e corajosamente colocá-los a serviço da construção de uma sociedade mais digna.

Daqui de fora, a criação de politicas públicas efetivas e a participação cidadã na cobrança e proposição de medidas que garantam acesso a serviços e direitos básicos a toda a população, é um primeiro passo necessário. Mas não precisamos ir tão longe. Começar por rever nossos privilégios e nos perceber responsáveis por como fazemos uso deles, desperta um ciclo virtuoso de possíveis mudanças na forma como enxergamos o outro e nos relacionamos com ele, especialmente se ele estiver longe do alcance dos nossos olhos.


Cartaz criado por uma linda jovem do Projeto Sulwe


E entre os agradecimentos movidos pelo amor genuíno que cultivamos entre nós, todos me emocionaram, mas um deles me tocou a alma. Juntas me cantaram uma música e encerraram dizendo: “Você ajudou a gente a acreditar que podemos tudo.

Pois é. Podem mesmo. E esse é só começo.


Gabi * * *


Fontes e Links de interesse:

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