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Tribo Yawanawá na Amazônia



Sempre me interessei pela cultura indígena. Não sei explicar exatamente o porquê, mas é uma forma de admiração pela sabedoria ancestral e pelo modo de vida conectado com a natureza. Esse respeito à natureza precisa ser reconstruído, uma vez que o ser humano tem se distanciado dela cada vez mais com a urbanização.


Tive a honra de ser muito bem acolhido pelo Gilberto, pelo Jeré, pela Janete e por suas famílias da tribo Yawanawá em sua aldeia às margens do Rio Gregório, no Acre. Pra chegar lá, a partir de São Paulo, requer sete horas de voo até Cruzeiro do Sul, três horas de carro até o vilarejo de São Vicente e seis horas de barco até a aldeia. Apesar dos números cansarem só de ler, foi tranquilo e cheguei muito bem.


Hoje, a tribo é composta por 1200 pessoas que vivem em sete aldeias ao longo do rio. Da primeira aldeia até a última são cerca de quatro horas de barco. Fiquei na aldeia Escondido onde moram cinco famílias, totalizando 25 pessoas. Segundo o livro Plano de Vida Yawanawá (de abril de 2016), houve um momento na história que eles eram apenas 79 índios.


Um primeiro detalhe que me chamou atenção é que há três gerações eles têm se casado com brasileiros que não são indígenas, resultando numa miscigenação cultural muito interessante.

Não levei grandes expectativas, minha intenção era apenas poder estar presente com eles por uma semana, no ritmo deles, trocando experiências numa relação o mais espontânea possível e aprendendo.


É importante explicitar que esse texto é baseado nas impressões pessoais que tive nessa experiência com a tribo Yawanawá em junho de 2017, a partir do que senti, vi e ouvi. Minha perspectiva não reflete, necessariamente, a realidade indígena de tantas outras tribos pelo Brasil.


A primeira sensação foi lembrar quão prazeroso é diminuir a aceleração mental. Por mais estranho que pareça pra quem sempre morou na cidade, como eu, conseguir ficar sentado conversando com pessoas com intervalos de alguns minutos de silêncio é maravilhoso. Assim como parar pra observar o entorno e escutar os sons, com calma. Nesses momentos fica muito claro pra mim o quanto o “sagrado” telefone celular nos aproxima quando estamos distantes, mas nos distancia muito quando estamos tão próximos.



Tentar ficar o tempo todo desconectado da rotina, dos afazeres, do local de costume e do celular (até porque não funciona lá) me dava uma leveza muito boa, uma sensação de presença, de estar 100% ali vivendo só aquele momento e em nenhuma outra realidade. Inclusive fica o convite para essa prática, que seja algumas horas por dia, por semana ou por ano. Assim que voltei à cidade “com sinal” passei a dormir com o celular no bolso pra matar a saudade, mas já estou procurando a cura novamente…


O uso das modernidades no nosso dia-a-dia foi uma primeira reflexão constante. Talvez porque ainda cultivo a esperança de que existam pessoas que resistem ao consumo e pratiquem mais simplicidade. Esse era um ligeiro pré-conceito que associava aos indígenas.


Por exemplo, até o ano 1996 ou 2000 (as datas variavam um pouco nas explicações que me davam – um traço da personalidade deles) eles se locomoviam de barco com varejões. O varejão é um longo bambu com o qual empurram o fundo do rio pra movimentar o barco. O que significa que, na época eles demoravam seis ou sete dias pra chegar do vilarejo mais próximo até a aldeia mais distante, o que só era possível quando o rio estava com seu nível baixo. Hoje o mesmo trajeto – de acordo com o nível da água, o barco, o motor e o peso – pode ser feito de três a seis horas. O varejão ainda é usado para pequenas distâncias e quando o barco toca o fundo do rio. Acho que fica evidente que essa modernidade é de bom uso pra eles.



Outros aparatos são: o gerador de energia que foi instalado há 5 ou 6 anos e ilumina a aldeia, faz o freezer gelar e a bomba d’água levar água do poço para as casas; o telefone celular que na aldeia é usado pra músicas, vídeos e jogos; a motosserra; o fogão; o botijão de gás; a espingarda; e os utensílios de cozinha.


Que bom que isso tudo melhora a forma como vivem, mas era impressionante como o conceito indígena na minha cabeça ficava confuso por ver tantas coisas da cidade grande sendo usadas no meio da floresta. Daí já ficou o questionamento sobre quão útil o desenvolvimento e a tecnologia podem ser em determinadas situações, ao passo que em outras nem tanto.



Ainda assim, eles vivem numa estrutura simples. As casas são de madeira, alguns dormem em colchão, outros em redes, o banheiro é uma casinha de madeira no mato, tomam banho e lavam coisas nos igarapés ou no rio. Eu gostava muito dos banhos nos igarapés e normalmente tomava de shorts com os meninos, mas confesso que numa noite ao me banhar sozinho com o nível da água mais alto (em razão da chuva), tive aqueles momentos de “poluição mental de Hollywood” nos quais temi que um jacaré e/ou uma cobra gigante aparecesse e me levasse com violência.


Curiosamente, ao perguntar sobre os problemas, o Roberto, filho do Gilberto, falou que o maior problema é o mosquito. Concordei muito, porque durante o dia, quando eu não estava 100% coberto, havia algum mosquito colhendo substâncias da minha pele o tempo todo. Era cansativo pra mim. Vou guardar essa lembrança pra um dia que estiver irritado com uns pernilongos a mais em casa e praticar empatia com quem está na Amazônia com eles o ano todo.



Minha segunda reflexão constante era em relação ao convívio deles com a cidade. Eles vão com frequência pras cidades mais próximas, Tarauacá e Cruzeiro do Sul. As principais razões são: sacar dinheiro, comprar combustível e comida, ir ao médico e ao dentista e estudar (ensino superior).


Dinheiro As principais formas de renda deles são: o etnoturismo, quando os visitantes contribuem com uma taxa (como aconteceu comigo); cargos públicos como professor, agente de saúde, agente de água e agente da floresta; aposentadoria rural; Bolsa Família; venda do excedente de produção das plantações (a aldeia Escondido vende arroz, melancia, macaxeira e sua variações como farinha e tapioca); e projetos que vendem recursos locais para organizações externas, como o urucum que é usado pra cosméticos.



Compras Eles precisam de gasolina e diesel para os motores e recorrem aos mercados da cidade pra comprar alimentos como farinha de trigo, café, açúcar, sal, leite em pó, suco em pó, chocolate, bolacha, ovo, entre outros. Por mais que também criem galinhas e patos, elas não colocam ovos o suficiente. Também usam outros produtos como lanterna, pilha, cola, sabão, shampoo e desodorante.


Um detalhe importante é que sempre achei lindo ter galinhas no quintal, mas parei de gostar, por enquanto. Isso porque elas me acordavam todo dia às 4h30min da manhã cacarejando a cada vinte segundos (eu cronometrei). Como as casas são de palafita, as galinhas emitiam sons sob a minha cama – literalmente –, era uma sensação que elas estavam dentro de mim…



Saúde Por mais que tenham agentes de saúde nas aldeias maiores (Nova Esperança e Mutum), ali os serviços são mais básicos. Para qualquer complicação mais séria e até mesmo para realizar um parto eles vão aos hospitais da cidade. Infelizmente, como em lugares por todo o Brasil, o serviço público é bastante precário.


De qualquer forma, a medicina da floresta ainda é usada e bem conhecida pelos pajés. Existem plantas e combinações pra curar dor de cabeça, dor de barriga, corte e queimadura na pele, tumor, bebê prematuro e picada de cobra. Experimentei uma medicina feita de seiva e aplicada no olho que tem o intuito de melhorar a vista. A sensação não foi muito boa por alguns segundos. Tem também uma medicina mais “vingativa” que cura a traição por meio da impotência…


Educação As aldeias maiores têm professores até o ensino médio, mas na aldeia Escondido só tem até o ensino fundamental. Como são poucas crianças e jovens, eles acabam misturando muitas idades na mesma sala. Como por exemplo, a sala dos jovens era o 9º ano e eles têm entre 14 e 21 anos. Uma matéria bem particular é a do idioma Yawanawá que precisa de um fortalecimento, uma vez que, hoje em dia, as crianças aprendem a falar português primeiro e eles perceberam o risco do desaparecimento do seu idioma nas próximas gerações.



Pra estudarem no ensino superior eles têm que mudar pra uma das cidades. Dentre tantas conversas que tivemos, nenhum deles já tinha um curso da faculdade em mente. Exceto o Francisco, sobrinho do Gilberto, que, na verdade, quer ir para o exército.


Os jovens são muito divertidos. Se zoam muito e tem personalidades bastante diferentes. Na foto, da esquerda pra direita (de camiseta): O Maeis é mais brincalhão, o Vicente mais tímido, o Francisco mais carinhoso, o Raélison está sempre rindo e o Jederson fala bastante. Todos muito gentis.



No passado os casamentos envolviam muito a influência dos pais, mas hoje os jovens se conhecem por conta própria. Ouvi relatos de adultos preocupados com o clima de “pegação”, relatos de meninas sem esperança de encontrar um parceiro nas aldeias e esperam encontrar na cidade. Contudo, o menino ainda tem que pedir permissão para o pai da noiva pra morarem juntos. Normalmente o casal novo vai morar onde o pai dela mora. Não fazem uma cerimônia de casamento, apenas se juntam. E também existem divórcios.


Perguntei sobre outros tipos de relacionamento que consideram a pluralidade de orientações sexuais e identidade de gênero. A resposta foi que não aceitam a homossexualidade nas aldeias, ainda que existam índios homossexuais nas cidades próximas, atualmente.

Infelizmente, é possível notar que a educação em direitos humanos, sob o viés do gênero, é ainda mais evidente em regiões remotas e vulneráveis.


Um detalhe curioso na relação humana deles, é que não vi um carinho explícito nenhuma vez, como um abraço ou um beijo. Só as crianças que se encostam mais nas brincadeiras. Na despedida eu queria dar em cada um aquele abraço apertado com um segundo de silêncio, mas não me senti confortável para tanto. Porém, um abração espontâneo rolou. Uhu!


Existe uma clara divisão de tarefas que parece estar bem estabelecida e ser pouco mutável. As mulheres cozinham, fazem a farofa de macaxeira, lavam louça e roupas, cuidam da casa e fazem artesanato. Os homens caçam, pescam, plantam, constroem, comercializam e lideram. Pelos dias que estive ali o trabalho das mulheres pareceu ser mais demandante que o dos homens.



O senso de coletividade é algo muito verdadeiro entre eles. Todos os dias eles se juntavam pra fazer alguma tarefa necessária e era muito produtivo o trabalho em conjunto. Como, por exemplo, fizeram tábuas de madeira e as carregaram pra fazer a base de uma nova caixa d’água e podaram a plantação de macaxeira. Nessa segunda atividade veio o pessoal da aldeia Tibúrcio pra trabalharem juntos e ao final tivemos um jogo de futebol com todos. Eles têm um campinho bonito com traves feitas de tronco e rede. Jogam todo dia e jogam bem.


Também existem atividades solitárias como caçar paca ou tatu de noite com espingarda. Caso todas as casas não encontrem o que caçar, a comida é compartilhada. Em contrapartida existe certa diferença de poder e tamanho das casas – como em qualquer grupo grande – mas senti uma preocupação mais genuína de uns com os outros. Muito bonito.



A fim de preservar a cultura, existem regras nas aldeias que achei muito inspiradoras. Como, por exemplo, após uma crise com o consumo exagerado de álcool em 2000, eles proibiram seu consumo nas aldeias. Eles também não falam palavrões – nem no futebol (aleluia!) – e evitam ouvir música da cidade. Um dia teve uma noite com forró e tecno brega, mas algumas pessoas da aldeia não gostaram muito.


Por diversas vezes o Jeré pegava o violão e cantava músicas em Yawanawá com as crianças. Era uma energia muito poderosa que eu sentia com a força das vozes em meio à natureza, especialmente de noite, na companhia de um céu estrelado como eu nunca tinha visto. Eram meus momentos favoritos.


A preocupação com a natureza também é bastante genuína. Quando existe um desequilíbrio eles se reúnem pra decidir ações. Como é o caso da proibição da caça de jacarés e tracajás (espécie de tartaruga) que estavam desaparecendo.


Um ritual que eu tinha interesse em conhecer era o “uni”, um chá feito de cipó de uma planta com as folhas de outra e é tomado em cerimônias para se conectarem com a “força da natureza”, como eles mesmos se referem. Esse chá também é chamado de Ayahuasca e diferentes xamãs da região amazônica (brasileira e estrangeira) fazem rituais a partir de diferentes misturas. Eu vi todo o processo trabalhoso de colheita, maceração e cozimento.



Pra conter a expectativa: eu não pude provar. Isso porque eles provaram o “uni” um dia num breve ritual e falaram que tomaríamos juntos com índios de outras aldeias num ritual especial dias depois. Porém, no dia previsto aconteceu algo que, como o Jeré falou, “índio não gosta”: o tempo esfriou.


Foi um choque, pois durante o dia criei uma expectativa pra experimentar e só depois do jantar entendi que não tomaríamos mais. Foi interessante como no segundo que descobri me subiu um nervosismo da decepção e os pensamentos começaram a alimentar a raiva: “Como assim, eu vim até aqui pra não tomar?”; “Eles prometeram, que sacanagem…”; “Porque eu não tomei dias antes”; “Os líderes não se importam com os outros”; dentre muitos…


Minutos depois eu respirei fundo e comecei a praticar a simples presença. Eu ainda estava ali, no meio da Amazônia (onde sempre quis estar), em volta de pessoas muito gentis, me esquentando numa fogueira e conversando. Porque algo poderia ser tão ruim? E passei a bloquear esses pensamentos negativos, a aceitar que não era pra eu tomar naquela ocasião por algum motivo e voltei a curtir aquele “agora”.


Foi uma sensação muito boa sentir esse equilíbrio ao controlar a ira. Lembrei dos “S” da meditação Vipassana: as Sensações surgem de Sentimentos que nasceram de algum Sentido. No caso foram sensações negativas de calor interno que eu mesmo criei com o sentimento da raiva ao ouvir (sentido da audição) uma informação que eu não esperava. Nessas horas os pensamentos da mente racional são muito responsáveis por isso. Pra mim, respirar fundo e concentrar em limpar os pensamentos ajudam muito.


O mais curioso foi que o decorrer dessa noite foi o dia que tivemos conversas mais profundas, pude conhecer um pouco mais dos medos e sonhos deles e foi o único momento que perguntaram mais sobre mim e sobre o meu trabalho. Será que só aí sentiram uma abertura maior e mais paz da minha parte para tanto? Não sei responder, mas ficou essa auto provocação.


Foram dias muito especiais. Vivi uma realidade que não conhecia e aprendi muitíssimo em cada experiência.


MUITÍSSIMO OBRIGADO a cada um dos Yawanawá e a todos da aldeia Escondido, à beira do rio Gregório, no Acre, na Amazônia que me receberam com tanto amor. E também meu muito obrigado pra Fofa e pro Juliano – da Turismo Consciente – que permitiram essa experiência marcante.


Essa reportagem conta mais sobre o festival Yawanawá que eles fazem todo ano.

Por último, mas não menos importante, vale lembrar que hoje os povos indígenas brasileiros estão divididos em 305 grupos e representam apenas 0,43% da população. Eles ainda sofrem graves violações de direitos e discriminação, segundo aponta esse relatório da ONU de 2016.

Felipe

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